Mulheres diretoras e o cinema queer foram destaques
Artigo

Em 2023, mulheres diretoras e o cinema queer foram os verdadeiros destaques

Há quem diga que o cinema vive uma crise (ninguém que mereça ser levado a sério de verdade), e tenho dúvidas se isso é verdade ou se quem diz essas palavras só está olhando para o lugar de sempre. Existem vários argumentos para dizer que nesse ano, homens e mulheres na direção fizeram bons trabalhos e deve ser verdade, basta olhar a lista de qualquer premiação que começa a pipocar agora, e ver a cota de uma única mulher em qualquer lista. Na verdade, esse texto nasce de um incômodo recorrente, a repetição das mesmas pessoas, sempre. Entra ano e sai ano, alguns filmes (dirigidos por mulheres e pessoas queers) sempre são escanteados, e são sempre resgatados dentro de bolhas especificas de discussão, o que faz esses filmes terem alguma sobrevida. Por exemplo, o projeto fantástico ‘Feito por Elas’, que analisa e discute mulheres diretoras no cinema ao longo dos anos com publicações no site e podcast de mesmo nome, além da ótima curadoria de filmes. Um projeto que está acontecendo nesse momento, no canal de Youtube da Cinemateca Brasileira, é o curso ‘Mulheres Pioneiras no Cinema’, que vale a pena conferir.

Greta Gerwig

A partir dessas observações, me parece ser uma escolha política fazer um recorte sobre os bons filmes que não foram dirigidos por homens heterossexuais cisgêneros. De todo modo, ainda é muito inferior o número de produções de mulheres e pessoas queers na direção por exemplo. Esse artigo nasceu a partir de várias representações e listas que me incomodavam quando diversos cinéfilos, ao fazerem suas listas de melhores diretores – esse é o caso, diretores, apenas – não colocavam nenhuma diretora mulher ou nenhum diretor assumidamente queer, por exemplo. Ao propor essa discussão e listar algumas produções, já que qualquer lista que saia agora contemplará basicamente os mesmos filmes, a aposta foi de inverter o que sempre acontece.

E não citar os bons filmes feitos por homens brancos héteros em 2023 não significa que eles serão esquecidos ou que não fizeram um bom trabalho. Por exemplo, Bergman, Hitchcock, Kubrick, Godard tem o nome gravado na história do cinema, eles são inesquecíveis, não há dúvida. É certeza, absoluta, que suas contribuições para o desenvolvimento da sétima arte serão lembradas eternamente.  Ao mesmo tempo, sempre haverá espaço para sujeitos medíocres como J.J. Abrams, David Gordon Green, Sam Levinson e tantos outros com orçamentos infinitos disponíveis para produzirem qualquer coisa. Então não, homens não serão esquecidos, o cinema não vai deixar de ser cinema por vez ou outra colocarmos como destaque mulheres e pessoas queers cineastas em destaque. Um beijo para a magnífica Chantal Akerman!

O foco se manteve em filmes que assisti ao longo desse ano e que de alguma forma me chamaram atenção por sua boa qualidade técnica na direção e narrativa, e infelizmente muita coisa ficou de fora. Curiosamente, todos os filmes aqui citados, são de medianos (algo extremamente comum), para muito bons e excelentes. Isso, logo de saída, acaba com a falácia de que mulheres ou pessoas queers fazem filmes ruins, chatos, fracos ou os adjetivos mais rasteiros, como ‘’identitários’’ e ‘’militantes’’. Até o momento, ‘Past Lives’, ‘Incompatível com a Vida’ e ‘Anatomia de uma Queda’ são os melhores filmes do ano, no mesmo nível de ‘Assassinos da Lua das Flores’ do gênio Martin Scorsese. Provavelmente Scorsese será o único hétero cis citado com grande exaltação nesse texto. Confesso que estou ligeiramente ansioso para conferir ‘Zona de Interesse’ do Jonathan Glazer também. Colocado todos esses pontos, vamos ao que interessa.

É impossível falar do cinema em 2023 sem citar o fenômeno cultural ‘Barbie’. É bem possível que ‘Barbie’ possa ser o grande agraciado na noite do Oscar, e se for, será merecido. Resgatando um tweet da colunista deste site, Fabiana Lima, talvez estejamos subestimando o poder de ‘Barbie’ ao longo da temporada de prêmios. Barbie, é dirigido e roteirizado por Greta Gerwig, e seria uma obviedade citar o sucesso inconfundível em sua passagem pelos cinemas. Inclusive, se Greta Gerwig levar como melhor direção será um bom reconhecimento, pois ‘Barbie’ só é o que é, graças a Gerwig, gostem os críticos ou não. Fazendo uma eficiente dobradinha de marketing com o mediano ‘Oppenheimer’, de Cristopher Nolan, esse último foi mais beneficiado por Barbie do que o contrário. Inclusive escrevi a crítica do filme sobre o pai da bomba atômica aqui para o Cinem(ação).

É fato que ‘Barbie’ é um fenômeno, um bom filme e tem muito dinheiro para campanha, ou seja, tem todos os predicados para levar os maiores prêmios e reconhecimentos. Nessa corrida temos o ainda não estreado no Brasil por uma estratégia burra da distribuidora, ‘Past Lives’ da diretora Celine Song. O filme que estreou ainda no primeiro semestre em terras estadunidenses, retrata um amor desencontrado a partir de uma perspectiva muito pessoal, e trabalha a sensibilidade e o tempo dos acontecimentos de maneira muito particular. Ainda no início do ano tivemos um excelente filme que não vai parar nas premiações, mas é um filme magnífico. ‘Cocaine Bear’, ou o Urso cheiradão ou ‘O Urso do Pó Branco’, dirigido por Elizabeth Banks, uma querida que merece mais reconhecimento, por sua criativa execução de cenas comuns.

Ainda no final de 2022 e início de 2023, em terras brasileiras, tivemos o lançamento do fenomenal ‘Mato Seco em Chamas’ que têm a codireção de Joana Pimenta. Na minha opinião, é o melhor filme brasileiro do ano pela vigorosa construção de um faroeste moderno e feminista no cerrado brasileiro. Ainda nesse mesmo tempo, tivemos ‘Raquel 1:1’, dirigido Mariana Bastos, que carrega alguns problemas de execução pontuais, mas que ambienta sua narrativa no cenário aterrorizante do radicalismo religioso e discute essas questões num filme extremamente simbólico e com muitas alegorias interessantes. Nessa mesma dinâmica, com lançamento esse ano, ‘Medusa’ da diretora Anita Rocha da Silveira tem ideias interessantes ainda que deslize em alguns momentos.

Eliza Capai

No finalzinho de 2022, o grande ‘Carvão’ de Carolina Markowicz, chegou garantindo seu lugar como um dos melhores filmes do final do ano passado e com grande repercussão mundo a fora. ‘Carvão’ foi tão impactante, que escrevi um artigo neste site sobre a destruição da esperança a partir da narrativa de Markowicz. A mesma Carolina lançou recentemente, e está nos cinemas, seu novo longa ‘Pedágio’, que assim como todos os filmes brasileiros aqui citados, sofrem ou sofreram com pífia distribuição pelas salas de cinema. Isso reforça a necessidade da cota de tela, ferramenta institucional importante para a valorização e expansão do cinema nacional.

E para fechar as citações ao cinema nacional, por último e talvez o mais importante e impactante, o documentário ‘Incompatível com a Vida’, da diretora Eliza Capai. É dilacerante, poético e político na medida certa ao tratar de vida, morte e corpo numa linha tênue repleta de atravessamentos simbólicos e culturais. Capai parte do extremamente privado e íntimo para o público e coletivo na tentativa de elaborar um trauma. É um filme tão grandioso, que assim como as pessoas retratadas, escapa da linguagem alguma descrição que dê conta de fazer síntese do que ‘Incompatível com a Vida’ pode significar.

Justine Triet

Ainda em 2023, tivemos o excelente ‘Anatomia de uma Queda’, da diretora francesa Justine Triet, ganhadora da palma de ouro em Cannes, e que fica ali na segunda ou primeira posição de melhor filme do ano com muita facilidade. A também francesa Léa Mysius, chegou com ‘Os Cinco Diabos’ esse ano, uma narrativa queer com pitadas de realismo mágico. Na comédia temos dois grandes vencedores na minha opinião. ‘Bottons’ de Emma Seligman, é divertido, sarcástico e hiperbólico. ‘Joy Ride’ – que por algum motivo ridículo o título brasileiro é ‘Loucas em Apuros’ – da diretora Adele Lim, é irônico, subversivo e extremamente engraçado, resgatando bons momentos de risada genuína ao longo da rodagem. No terror, há ‘Totally Killer’ ou ‘Dezesseis Facadas’, dirigido por Nahnatchka Khan, que reserva bons momentos de tensão e razoável execução da violência, se destacando por isso e por uma ideia muito interessante de viagem no tempo.

Correndo por fora, mas nem tanto, temos os dramas familiares e de amadurecimento. ‘Are you there God, its me Margareth’ – ou mais um título ridículo brasileiro ‘Crescendo Juntas’ – da diretora Kelly Fremon, que figura como um dos melhores filmes do ano. Sua história simples e com um tema relativamente espinhoso, é contornado de maneira gentil e franca entre os personagens. O filme coach ‘Nyad’, codirigido por Elizabeth Chai Vasarhelyi, conta a tradicional história inspirada em fatos reais e apela para o esforço e superação muito comuns em filmes de figuras esportivas. De todo modo é bem executado e montado, e as excelentes atuações das veteranas Jodie Foster e Annette Bening compensam o investimento.

Kasi Lemmons

Lá no início do ano, com lançamento no Brasil, a biopic de Whitney Houston com ‘I Wanna Dance with Somebody’, dirigido por Kasi Lemmons teve recepção morna, e apesar da direção muito competente de Lemmons, o maior defeito do filme é o roteiro fraco e episódico que deixa tudo com um gosto de água de salsicha e desperdiça a potencial história de uma das maiores cantoras pop dos anos 80. Agora no final do ano tivemos ‘As Marvels’ da diretora Nia DaCosta, e mesmo com a recepção moderada é possível ver sua qualidade como diretora, apesar das interferências do estúdio. Recomendo fortemente, ‘A lenda de Candyman’ (2021) em que ela é o filme com toda sua personalidade artística.

Dividido com propósitos exclusivamente didáticos, já que muitas dessas narrativas se misturam, no mundinho queer me diverti bastante com as histórias narradas e com a perspicácia de um cinema autoral. Alguns filmes já citados também se incluem nessa categoria, como ‘Bottons’, ‘Pedágio’ e de certa maneira, a biopic de Whitney poderia figurar no cinema queer, ainda que trate essas questões de forma tímida.

Logo de saída temos ‘Rotting in the Sun’, do diretor Sebastían Silva, que tem crítica aqui no Cinem(ação), e é uma aposta no humor ácido, explícito e emocionalmente profundo. Há ‘May December’, do diretor Todd Haynes, um dos expoentes do cinema queer dos anos 90, e que atravessa esse filme com sua costumeira sexualidade à flor da pele e com seus símbolos eróticos por todo canto, brincando com o subversivo e o proibido.

Todd Haynes

Recentemente estreou em terras brasilis, ‘Theater Camp’ codirigido por Molly Gordon, que também escrevi aqui no Cinem(ação), e que encanta até aqueles que não gostam de cantoria no cinema. O drama erótico ‘Passages’, do diretor Ira Sachs consegue, ainda que de forma meio torta, transmitir com sensualidade dosada, um retrato de como as relações pós-modernas – um beijo para o Bauman – têm atravessado os novos relacionamentos, especialmente as relações fora do escopo nuclear.

Há ainda ‘Cassandro’, do diretor Roger Ross Williams, que também escrevi a crítica e pode ser lida aqui, que relata de forma muito gentil e convencional, a história de Cassandro, luchador gay de lucha libre, tendo como intérprete do biografado Gael Garcia Bernal em um papel que há muito não dava destaque a seu talento. O romance adaptado água com açúcar, ‘Vermelho, Branco e Sangue Azul’ do diretor Matthew López, gerou um burburinho pelas suas apostas interessantes, ainda que seja bem prosaico na sua execução, com crítica minha aqui no Cinem(ação).

Com lançamento esse ano no Brasil, tivemos ‘Medusa Deluxe’, do diretor Thomas Hardiman, finalmente contando histórias de gays trambiqueiras, com pouco luxo, muito laquê e ladainha e completamente filmado em ‘’plano sequência’’. Por último e não menos importante, na verdade o mais importante, por ele ser uma lenda, o pai de todas nós, gays latinas, Pedro Almodóvar, com ‘Estranha Forma de Vida’, um faroeste caboclo gay e melodramático com Ethan Hawke e Pedro Pascal como protagonistas.

Pedro Almodóvar

Existem alguns filmes que ainda estão para estrear no Brasil ou para chegar em VOD. Esse é o caso de ‘Priscilla’, de Sofia Coppola, uma das melhores diretoras em capturar de forma muito peculiar a angústia da mulher branca de classe média. Ainda sem data exata de exibição, mas com um bom caminho por festivais, está o brasileiro ‘Sem Coração’ codirigido por Nara Normande, que vem recebendo bons elogios de quem assistiu e conta com a presença da cativante Maeve Jinkings, essa também presente em ‘Carvão’ e ‘Pedágio’.

O filme que continua ainda sem data definida de lançamento é ‘All of Us Strangers’, do diretor Andrew Haigh, e que em poucas exibições têm conseguido boa repercussão. Segundo a sinopse e trailer divulgado até o momento, Paul Mescal e Andrew Scott são um casal e juntos visitarão o passado em longas conversas sobre afetos e saudades. Outro que chega no próximo dia 22 é ‘Saltburn’, da oscarizada Emerald Fennell, que tem recebido críticas divididas sobre sua aposta num drama erótico de classes. Falta pouco para conferir.

Seria extremamente conveniente fazer um texto muito semelhante a esse com os melhores filmes de 2023 sem distinção de gênero e sexualidade, por exemplo. Mas isso as premiações já fazem e geralmente erram bastante. O ponto é que, nessa breve análise e listagem, me parece, pelo menos no primeiro olhar e a partir de uma percepção totalmente empírica, que o cinema dirigido e escrito por mulheres e pessoas queers, parece muito mais regular (no melhor sentido da palavra), estável, propenso a surpreender e autoral. Mesmo que a história contada seja oriunda de um clichê, o estilo e a subjetividade de quem realiza, consegue imprimir e trazer respiros diferentes para os diversos gêneros cinematográficos representados.

‘Anatomia de uma Queda’ e ‘Passages’ talvez sejam bons exemplos disso. O primeiro é um drama de tribunal (quantos já não vimos), o segundo um romance de erótico das relações modernas (inúmeros já foram feitos), porém ao analisar a estética artística das realizadoras, existe uma percepção outra frente aquilo que já conhecemos. Ainda que sejam boas tramas, no caso de ‘Passages’, e tramas excepcionais, no caso de Anatomia, e tantas outras citadas, é possível perceber um frescor na maneira que se conta aquilo que estamos vendo em tela. A escolha de enquadramentos e ângulos, as palavras roteirizadas, a perspectiva dos protagonistas, a resolução de conflitos etc. Tudo isso, mesmo que pareça pouca coisa, diz muito sobre como o cinema caminha e resiste.

Recentemente estava lendo o ‘Dossiê Agnès Varda’, um e-book do projeto Cine Suffragette, em que as organizadoras Larissa Oliveira e Letícia Magalhães resgatam uma fala muito interessante da melhor e maior cineasta já viva nesse planeta terra, Agnès Varda, no encontro no Lincoln Center Film Society, pouco antes de seu falecimento em que ela diz:

‘’minha luta é encontrar uma linguagem radical sobre o que foi dito que eu podia e devia executar, num cinema que não é um cinema feminino rastreável, mas sim um cinema feito por uma mulher cineasta.’’

E eu tomo a liberdade muito ousada e já pedindo perdão a Agnès, onde quer que ela esteja (eu acho que ela é a Deusa do Olimpo do cinema), para acrescentar uma pequena modificação: ‘’minha luta é encontrar uma linguagem radical sobre o que foi dito que eu podia e devia executar, num cinema que não é um cinema feminino [e queer] rastreável, mas sim um cinema feito por uma mulher cineasta e [uma pessoa LGBTQIA+ cineasta].’’

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