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Crítica: Incompatível com a Vida

Incompatível com a Vida
Direção: Eliza Capai
Sinopse: Longa-metragem documental brasileiro reflete sobre vivências da maternidade. A partir do momento em que a diretora descobriu a gravidez, ela decidiu registrar diversos vídeos no período de sua gestação. Somente tempos depois o feto foi diagnosticado com uma má formação chamada de “incompatível com a vida”. O projeto passa a se basear nos registros da própria gravidez, além dos relatos de outras mulheres que compartilharam experiências parecidas, evocando temas cque vão da vida à morte, passando por políticas públicas.

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Sempre me surpreende como o cinema tem o poder de nos colocar no lugar do outro. No escuro de uma sala, enquanto uma luz sai de um projetor, podemos viver as dores e as delícias de sermos quem o outro é. Choramos, rimos e nos assustamos no lugar do outro, ao ligar das luzes voltamos a ser nós mesmos e nenhuma outra arte do mundo deve ter o mesmo efeito que essa. No escuro, olhando para a tela, é possível se desligar do mundo “real” (O que é real? O que é ficção?) e sentir na pele o que jamais sentimos, vivemos, passamos. Tudo através do outro.

Lembro que no início da minha adolescência, era radicalmente contra o aborto. A todo momento minha criação católica me dizia que havia algo de errado na interrupção da gestação de outro ser humano, por isso minha moral (hoje talvez culpa religiosa, olhando em retrospecto) jamais me permitiria ser a favor de algo tão absurdo, era o que eu pensava. Aos 16 anos, passei a ter um contato muito maior com o cinema que com a literatura, me tornei mais próxima de movimentos sociais, mais ávida a procurar a realidade do outro, saí da minha bolha. Foi especificamente com essa idade que passei a me autodenominar cinéfila.

Muitas percepções em mim mudaram desde que o cinema passou a ser parte fundamental da minha vida e eu percebo que uma das principais diferenças foi a forma como passei a lidar com o tema aborto. Em 2019, eu conheci o cinema feminista e extremamente vanguardista de Agnès Varda e assisti “A Resposta das Mulheres” pela primeira vez. No mesmo ano, tive contato com o documentário “Clandestinas”, disponível gratuitamente no YouTube, e em 2020 assisti o fatídico e para mim inesquecível filme “Nunca Raramente Às Vezes Sempre” de Eliza Hittman.

A toda nova obra sobre o tema que passava por mim, nascia uma nova concepção sobre a liberdade reprodutiva das mulheres e como era cruel da nossa parte forçar um outro ser humano, seja quem for, sob qual circunstância for, a gerar e enfim conceber uma vida que jamais desejou. Ou que ainda desejando, não teria condições de prosseguir cuidando. Me parecia cada vez mais desumano, cada vez mais brutal. Me tornei uma defensora plena do aborto, seja qual for a causa e assim sigo sendo, até provavelmente o dia em que morrer.

“Incompatível com a Vida” é um desses filmes que provavelmente, para muitas pessoas, carregará consigo o poder indiscutível de mudar radicalmente a perspectiva do outro sobre o aborto, sobre a vida e a morte. O documentário de Eliza Capai é tão absurdamente vulnerável e honesto, funcionando como uma espécie de diário de gravidez e um diário pandêmico, também, que qualquer pessoa consegue entender pelo menos minimamente o que realmente significa ter um olhar empático sobre o outro, fazê-lo calçar os sapatos de quem nunca viu e sentir as mesmíssimas dores, sem tirar nem pôr.

A começar pela forma que a cineasta começa o filme, através de uma confissão. Capai dedica os primeiros minutos de sua obra para situar o espectador diante de sua situação: estava grávida, durante a pandemia, vivendo no Brasil sob a gestão genocida do governo Bolsonaro, quando decidiu documentar a vida que ali crescia no seu ventre. Tímida, Eliza diz evitar fazer um filme sobre ela. Então começam os relatos. De início, não fica claro que o filme tomará caminhos tão dolorosos, mas é latente a atmosfera pessimista tanto sobre o Brasil, tanto sobre a gestação, sensação esta que vai e vem, como as ondas do mar.

Ao longo do filme, Capai entrevista mulheres que passaram pela mesma experiência que ela: geraram vidas que souberam posteriormente serem incompatíveis, em outras palavras, crianças que uma vez no mundo, não resistiriam muito tempo depois do parto. Consciente da importância de mostrar todos os mil rostos que fazem parte do país, escolheu a dedo as mulheres que contariam seus relatos mais dilacerantes à sua maneira, de religiosas conservadoras a perfis mais liberais. De mulheres com boa condição financeira e rede suporte, a mulheres de classes baixas, sem suporte de companheiro algum.

Todos esses rostos e diferentes panos de fundo convergem em um único ponto: o peso avassalador que vem com a responsabilidade de ser mãe, além da dor imensa que é saber que a vida que gera não resistirá e que, mesmo que deva caber a você a decisão de interromper a gravidez, ainda precisa passar pelas canetas insensíveis de uma justiça misógina e cruel com mulheres, a resposta última do que deverá ser feito com o seu próprio corpo. A escalada das entrevistas que culminam em uma onda de revelações absurdas sobre o sistema judiciário brasileiro e a invisibilização dessas mães, é nada menos que devastadora.

Eliza Capai decide se despir em tela de toda a sua dor e, no auge de sua vulnerabilidade, expõe a imagem do feto, o filho, do qual teve que se despedir, enquanto abre para nós a intimidade do seu relacionamento, ao expor um marido que não aguentou o peso da tragédia. O filme faz jus a toda essa carga dramática que tem como principal potência a sua crua honestidade. A fotografia, quando não escura, explorando as sombras e as paisagens de forma melancólica, expõe uma naturalidade no tratamento da imagem, sem filtros.

A alusão do mar é perfeita na descrição de uma dor imensa, do luto em sua forma mais pura, como ondas que voltam e vão em forma de memórias. É a maternidade como uma alusão a atirar-se no abismo, enfrentar o medo do escuro, afogar e depois voltar à superfície para retomar o fôlego. Dia após dia. “Porque alguém se permite filmar em imensa dor?” Pergunta Eliza na frente das câmeras. Algo que o espectador com certeza pode se perguntar depois de assistir o seu filme, vendo a diretora chorar, gritar e se espernear em tela. Porque permitir tamanha vulnerabilidade?

E é aí que mora a importância da obra para mim, gerar conexão. Compreensão, empatia, alteridade, são todos sentimentos que podem ganhar vida a partir da expressão mais verdadeira do outro. É apenas quando essas mulheres contam sua história, sem filtros e sem julgamentos, e confessam suas maiores dores que percebemos a brutalidade do sistema. É preciso ouvir e dar voz a esses relatos para que reconheçamos que existem e os tratemos com a devida importância. Compartilha-se a dor, reconhece-se a impossibilidade da cura. Mas encontra-se a força.

Antes de Incompatível com a Vida, havia apenas uma única figura que me fez sentir tão vulnerável por meio de um documentário. Com “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho me fez compreender o poder do documentário na construção desse véu de realidade para gerar uma conexão implacável entre pessoas de “carne e osso”, dando voz às pessoas comuns e escutando histórias que às vezes nem a maior das imaginações pensaria como uma história “de cinema”. O real está cheio de cinema, e o cinema se retroalimenta do real.

É nesse mesmo sentido que Eliza Capai constrói um dos mais poderosos filmes de 2023, alimentando o cinema com as narrativas do mundo “real”, espelhando sua vida na tela a fim de encontrar pessoas com as mesmas dores ou, ao menos, aquelas que estarão dispostas a compreendê-las. Eis um filme emocionante, dilacerante e imprescindível quando o assunto for aborto no Brasil. Nasce uma nova obra-prima do cinema documental brasileiro.

  • Nota
5

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