Crítica: Barbie (2023) - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: Barbie (2023)

Barbie – Ficha Técnica:
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach
Elenco: Margot Robiie, Issa Rae, Kat McKinnon, Emma Mackey, Ryan Gosling, Simu Liu, Ncuti Gatwa, America Ferrera
Sinopse: Em Barbieland, o mundo mágico das Barbies, todas as versões da boneca vivem em completa harmonia e suas únicas preocupações são encontrar as melhores roupas para passear com as amigas e curtir intermináveis festas. Porém, uma delas começa a perceber que talvez sua vida não seja tão perfeita assim, questionando-se sobre o sentido de sua existência e alarmando suas companheiras. Logo, sua vida no mundo cor-de-rosa começa a mudar. Forçada a viver no mundo real, Barbie precisa lutar com as dificuldades de não ser mais apenas uma boneca – pelo menos ela está acompanhada de seu fiel e amado Ken, que parece cada vez mais fascinado pela vida no novo mundo.

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Me lembro nitidamente do dia em que ganhei a minha primeira Barbie. Chamei ela de Laura e brincava com ela todos os dias, sem falta. Laura tinha um corpo perfeito, os pés prontos para encaixar um salto 15mm, uma cintura de dar inveja e um cabelo que nunca ficava desarrumado, não importava o que eu fizesse. Ela não tinha pêlos, não mudava de expressão (esbanjava um sorriso perfeito, sempre) e nunca lidou com nenhum tipo de estresse ou mudanças de humor advindas de um ciclo menstrual. A Laura era exatamente tudo que eu queria ser mas ela nunca foi real e tinha dias que eu sonhava para que Laura “acordasse” e me dissesse o que ela queria vestir, dentre as várias roupas que eu aprendi a costurar a mão (especialmente vestidos) para ela, só que, para o bem ou para o mal, isso nunca aconteceu. Laura se mantinha imóvel e assim ficou, até eu enjoar dela.

Troquei Laura pelos livros infanto-juvenis e conheci a autora Meg Cabot. Eu lia O Diário de Uma Princesa compulsivamente durante minha pré-adolescência e, por conta do filme, sonhava em um dia passar por um “glow up”, como passou Anne Hathaway. Não gostava do meu corpo, eu era uma criança acima do peso que usava óculos desde os 8 anos e tinha sérios problemas com os cachos que formavam meus cabelos. Eu não me via nem em Barbie, nem em Anne Hathaway. Anos depois também não me via em Elle Woods, e sabia que nunca poderia ser uma Regina George. Passei bons anos da minha vida pensando que em algum momento eu finalmente me tornaria bonita o suficiente. Queria tanto entrar dentro dos padrões que eu acreditava serem os ideais de uma mulher desejável que isso durou minha infância inteira e boa parte da adolescência – o que quase me enlouqueceu.

Como eu, muitas meninas que cresceram sob os padrões estéticos violentos dos anos 2000 passaram anos se punindo até conhecer o feminismo. O normal era desenvolver uma relação complicada com a comida, com o próprio corpo e sobre relacionamentos, amor e sexualidade. Abuso era tabu, assédio também, mas a sensação de que isso existia estava ali o tempo todo, eu só não conseguia nomear. Apenas aos 16 o feminismo passou a fazer parte da minha vida, leituras, protestos, palestras, e aos poucos, do liberal ao radical, do radical ao interseccional, eu passei a me punir menos e me perdoar mais. Fui abraçando minha imperfeição e passei a lidar com ela como uma mulher que me tornava, consciente de que todo dia fora da proteção (aparente) da infância, o mundo iria me confrontar um pouco mais.

Essa introdução tão pessoal para falar sobre Barbie é necessária não apenas para escancarar de antemão o quanto a crítica de cinema não é imparcial (algo que eu adoro pontuar), mas também porque acredito que isso explica, em parte, o fenômeno de bilheteria que o filme se tornou, batendo recorde de maior arrecadação de um filme dirigido por uma mulher na história do Cinema em apenas três dias. Assim como eu, acredito que jovens mulheres se identificam com o filme, enquanto jovens meninas aprendem com ele.

Para além de uma estratégia de marketing bem feita, o filme de Greta Gerwig atraiu a atenção de um público tão amplo pois finalmente temos uma história que explora como seria um glow up reverso, em que uma boneca perfeita deseja se tornar, ironicamente, imperfeita. Enquanto meninas que cresceram sob a influência dos padrões irrealistas dos anos 2000 se sentem vingadas diante do sentimento de culpa que cultivamos por tantos anos, ao mesmo tempo introduz-se conceitos do feminismo para jovens garotas que, espera-se, pararão de perseguir o impossível e de se punir por isso – muito antes que nós.

A fim de alcançar o efeito desejado, Greta se entrega para o artificialismo arquitetônico, primeiramente, ao criar a Barbielândia, um cenário feito do zero que nos leva de volta para nossa infância através de um faz-de-conta típico de desenhos infantis: cartunesco, colorido e exageradamente cômico. Um pouco parecido com os programas que faziam parte da minha programação do Discovery Kids, como LazyTown. As casas sempre sem portas e sem divisórias, como um Dogville (2003) ultra colorido, também brinca com as possibilidades do espaço e da profundidade de campo no Cinema a fim de criar ambientes onde tudo ocorre ao mesmo tempo e onde, pelo mesmo motivo, tudo é possível.

Ao abandonar as limitações impostas pelo espaço e substituir isso pelo vão da imaginação, é possível criar uma praia onde nem areia e nem o mar se movem, e onde Ken extrapola o espaço antes conhecido indo para um terceiro lugar, um limbo, onde é impossível não sentir “the Ken-ergy”, em uma referência perfeita e atualizada ao clássico absoluto do Cinema (e um dos meus filmes favoritos), Os Sapatinhos Vermelhos (1948). No roteiro, Greta também experimenta refletir esse mundo sem paredes e, para isso, utiliza o recurso da narração em voice-over que lhe permite ser inteiramente autoconsciente da ironia que é fazer um filme feminista tendo a Barbie como protagonista e Mattel como financiadora.

A voz que aparece no filme, assim, é a representação clara e direta, no Cinema, da metalinguagem, do sarcasmo e, também, do quanto a diretora e o filme parecem saber que Barbie (2023) não tem o poder de mudar o mundo. Com sorte, Barbie no máximo irá atrair olhares para um tema muito importante e quebrar alguns recordes, mas nenhum filme, dentro de um contexto mercadológico, assim como nenhum discurso, por mais importante que seja, sai imune aos efeitos que o capitalismo tem sobre ele. Ir ao cinema esperando um protesto contra a Mattel ou contra o sistema não me parece muito razoável, assim como quem acredita no discurso de que a empresa não fez o filme buscando novos clientes. É claro que fez.

No entanto, eu acredito que é muito importante perceber que Greta é intencionalmente expositiva (para alguns, verborrágica) pois pega na mão do espectador, especialmente dos mais jovens, para dizer que embora o sistema ainda seja majoritário, ainda é possível pensar criticamente – nem que seja a partir de um olhar introdutório e um tanto superficial aos olhos de quem estuda o feminismo há mais tempo. Barbie não é uma aula sobre vertentes do movimento, história deste ou coisa parecida, mas é um desabafo, especialmente sobre a experiência de ser mulher. Da lavagem cerebral ao mansplanning, da relação mãe-filha à reflexão existencialista, Barbie é um aglomerado de coisas que passam pela cabeça de qualquer mulher que ouse pensar mais de dois minutos sobre sua própria existência.

Algo que não é tão comum para homens, claramente. O estranhamento do público masculino com o filme é engraçado pois com o que eles parecem se incomodar só hoje, mulheres sempre tentaram dizer que as incomodava: a representação patética e submissa que sempre tiveram no cinema. Há um tempo atrás eu escrevi sobre diretoras no neowestern e sobre como, a partir dos olhares dessas mulheres, minha relação com esse gênero mudou. Quando Ken assimila o patriarcado com vestes de caubói e cavalos, inclusive estampando a representação do Monte Rushmore, eu ri profundamente e nem preciso explicar o porquê. Da mesma forma de quando eu disse que não gostava de Era Uma Vez na América pela representação pobre que as mulheres têm no filme e recebi em troca uma palestra não-solicitada de um homem sobre o tema (exatamente como a cena em que a Barbie recebe uma aula do Ken que é fã de O Poderoso Chefão).

Existem sentimentos que apenas mulheres poderão se relacionar, o que não significa também que o filme não pode ser compreendido e criticado por homens. Admito que Barbie é sim um filme repleto de altos e baixos e que me perdeu em diversos momentos. Existem piadas que não funcionam (a da ansiedade me fez contorcer de vergonha alheia), seu primeiro ato é acelerado, assim como o resto do filme que resolve todos os seus problemas em 2,5x (por favor, que exista um director’s cut) e o momento em que tenta entrar para o mundo real, mudando sua abordagem para algo mais realista e menos artificial, é simplesmente tosco e um tanto incoerente com a abordagem inicial. Em suma, está realmente longe de ser um filme perfeito. O que salva Barbie para mim é que em todos os momentos em que se perde, ele foi capaz de encontrar seu caminho de volta.

Como crítica, advogada, mulher, Barbie é uma representação exagerada da minha vivência em vários espaços. Como filme, é uma versão cômica e mais comercial dos temas da filmografia de Greta Gerwig, exatamente o que eu esperava dela. Para homens, é a reprodução dos estereótipos que todos reproduzem ou já reproduziram, nascidos de uma noção patriarcal do mundo. Para a indústria, é uma revolução em marketing nas redes sociais, moda e música para divulgar um filme. Barbie é tão explosivo e grita tão alto que se torna impossível ser indiferente a ele. O impacto da obra vai além do local em que este irá se situar em seu discurso, é mais sobre promover um debate que alcança a massa e, por consequência, uma geração inteiramente nova de meninas e meninos. É realmente o poder do Cinema na prática, ainda que seja comercial.

Mais que isso, é a volta incontornável do cinema artificial e surrealista, algo que tem caído em desuso ultimamente com uma onda de falso realismo que parece abraçar o cinema cada vez mais. É a manifestação do estilo Camp do qual falava Sontag em pleno cinema blockbuster. O mundo está abraçando um filme que beira o brega, que exige suspensão de descrença, que se usa de um discurso muito importante, mas o faz utilizando uma estética inteiramente plástica, imaginativa. A Barbie estranha, o figurino de Ken, os números musicais: é o cinema que não tem medo de ser absurdo. De ser, simplesmente, não-natural. Esse é o seu maior mérito.

Em 2023 uma série de filmes me provaram mais uma vez algo que Bazin já falava há tanto tempo: a tela do Cinema é centrífuga. Em Barbie, eu realmente adentrei a tela, eu subtraí o espaço ao meu redor e vivi naquele universo. Pela primeira vez em anos, eu pude virar uma versão ainda melhor de Laura, minha primeira Barbie. Melhor porque eu me dei conta de que sou real e que meus pensamentos sobre morte, minha abjeção à minha celulite, minha síndrome de impostora, e tudo mais que faz parte da minha vivência enquanto mulher é parte de uma complexidade muito maior, que nada mais é que viver. Pela Fabiana de outrora, espero que jovens meninas tenham sentido algo parecido com o subir dos créditos: que elas tenham entendido que suas experiências enquanto mulher são coletivas, que é preciso parar de se punir e que, da melhor forma que puderem, possam abraçar suas imperfeições. Assim como eu me senti abraçada pela Greta e por esse filme.

  • Nota
4

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