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Crítica: Barbie

Barbie – Ficha Técnica:
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach
Elenco: Margot Robiie, Issa Rae, Kat McKinnon, Emma Mackey, Ryan Gosling, Simu Liu, Ncuti Gatwa, America Ferrera
Sinopse: Em Barbieland, o mundo mágico das Barbies, todas as versões da boneca vivem em completa harmonia e suas únicas preocupações são encontrar as melhores roupas para passear com as amigas e curtir intermináveis festas. Porém, uma delas começa a perceber que talvez sua vida não seja tão perfeita assim, questionando-se sobre o sentido de sua existência e alarmando suas companheiras. Logo, sua vida no mundo cor-de-rosa começa a mudar. Forçada a viver no mundo real, Barbie precisa lutar com as dificuldades de não ser mais apenas uma boneca – pelo menos ela está acompanhada de seu fiel e amado Ken, que parece cada vez mais fascinado pela vida no novo mundo.

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Noah Baumbach e Greta Gerwig já vem fazendo filmes sobre crises existenciais há 10 anos. Desde “Frances Ha” em 2013 que o assunto preferido da dupla é discutir o papel do ser humano no universo e elaborar uma tese socrática durante uma hora e meia sobre as confusões, dilemas e incômodos (principalmente) da mulher jovem americana. Em vários níveis, Gerwig e Baumbach desempenharam essa missão de modo exemplar. Seja na energia nouvelle vague do preto e branco de “Frances Ha”, seja na ambientação mais urbana e forçosamente descolada de “Mistress America” ou no afoito “Lady Bird”. Todos esses filmes fazem suas protagonistas sofrerem um bocado pra achar seu lugar no mundo. Todos eles lidam com sonhos, moldes e vontades. E tudo isso, felizmente, também está presente no novo esforço criativo do casal, “Barbie”.

Com uma embalagem de blockbuster, “Barbie” consegue se aproveitar de todo o marketing e orçamento de um blockbuster pra passar mensagens que dificilmente seriam transmitidas num filme comercial típico de estúdio. É até um milagre que os executivos da Warner e da Mattel tenham aprovado essa própria representação deles mesmos que nós vemos na telona. Em entrevista com a rede australiana ABC, Margot Robbie (também produtora do filme) e Greta Gerwig disseram que conseguiram o aval dos engravatados a duras custas e que demorou pra tudo se encaixar desse jeito – prova cabal disso é que o filme andou por várias mãos até chegar onde chegou; desde sua produção na Universal até um breve período na Sony, que teve Amy Schumer como Barbie. Ainda bem que no final da história a propriedade caiu no colo das pessoas certas.

“Barbie” de 2023 é um filme extremamente divertido e com muita ambição. Dessa vez, a crise existencial que estamos acostumados a ver num projeto de Gerwig se expande pra toda uma inteira sociedade. Uma cultura que é propositalmente fabricada como um oposto da nossa. Esse artifício é costumeiro no cinema e a própria Pixar acaba de repetir a mesma artimanha com “Elementos”: falar sobre problemas reais em um mundo fantástico. O filme é bem óbvio com isso inclusive. Porém o diferencial de Barbie é que ele faz questão de tocar nas feridas e quando se torna observador do mundo concreto, vira um conto de literatura empírica fantasiado de comédia adulta. Ele não se afasta dos temas sensíveis. É até brusco quando menciona palavras como fascismo, patriarcado, estereótipo ou até quando menciona e faz piada com as memórias involuntárias de Marcel Proust. Mas mesmo assim continua falando a respeito de tudo isso de uma maneira mordaz e volátil (talvez até demais), de um modo que educa e entretém.

E entretém como poucos. O filme tem várias demonstrações de puro êxtase cômico. A inserção (até bem participativa) de uma canção da banda Matchbox 20 como piada, pequenas frases como a da Liga da Justiça de Zack Snyder sendo tiradas como punchline a torto e a direito, e todo e qualquer momento com o Ken de Ryan Gosling ou com o Alan de Michael Cera são, juntamente com a performance focada e serena de Margot Robbie, os momentos altos da produção.

Outro ponto muito positivo também é a caracterização do mundo fantasioso de Barbie. Os sets e as pinturas de fundo evocam os tempos áureos de “O Mágico de Oz”, “Singin’ in the Rain” e a grandiosidade em escala dos cenários de Powell e Pressburger ou de Jacques Demy. A influência clássica não para só pelos aspectos físicos do filme. As atuações de Reynolds e Robbie tem uma pitada de Howard Hawks – principalmente como já bem evidenciado por Gerwig, o filme “His Girl Friday” – nessa mistura de um diálogo fogo-rápido e cheio de joguetes. Não poderia ficar sem falar também dos sets da empresa Mattel, que foram tirados diretamente do filme “Playtime” de Jacques Tati. São muitas referências que deixam qualquer cinéfilo bem empolgado.

Falando na Mattel inclusive, Will Ferrell e Jamie Demetriou capitaneiam esse núcleo do filme onde os executivos são representados como pessoas sem senso do ridículo e cheios de moralidade duvidosa. E apesar de já termos visto esse tipo de sátira em inúmeras outras obras de ficção, a acidez que Gerwig impõe nos diálogos de Ferrell dá um ar mais escabroso e inesperado pra entrega humorística que o papel demanda. Ainda dentro desse núcleo, America Ferrera é apresentada como talvez a terceira (?) protagonista do filme, a parte humana, que vem a ser extremamente importante no ato final da história. Ela é tida como a salvação em pessoa, quase uma figura messiânica, que chega na fantasia pra remediar a situação. Em algumas ocasiões ela chega a ter um tom um pouco enfadonho, mas nada que desagrade por muito tempo. Talvez faltou uma sutileza a mais. Mas isso é compensado e posto em equilíbrio quando vemos o potencial cômico da atriz em ação.

Enquanto isso, a declarada protagonista do filme é talvez a performance mais taciturna do elenco. Margot Robbie começa como um turbilhão de emoções e vai assim até metade do segundo ato, quando aos poucos desagua numa atuação sensível, de um carisma supremo, que quando posta em oposição com a performance extravagante de Ryan Gosling vira uma mistura assustadoramente divertida e cativante.

“Barbie” consegue aproveitar todo o marketing pra passar mensagens que dificilmente seriam transmitidas num filme comercial de estúdio.

O filme é isso, afinal. Uma diversão de alto nível. O que eu poderia talvez argumentar contra essa tese de absoluto entretenimento é que em algumas partes o longa demora a construir um tom hegemônico. Não consegue se encaixar em nenhum gênero, é volátil em excesso e às vezes faz essa passagem entre comédia e drama de uma maneira um pouco bagunçada. Mas quem liga pra isso é só a gente que adora uma picuinha mesmo. 

Com um subtexto pesado, que posto nas mãos erradas conseguiria talvez afugentar uma audiência mais ampla, “Barbie” felizmente toca nas feridas de maneira jocosa e engaja com pessoas de todas as mentalidades. Creio eu porém, que talvez não seria um filme feito com as crianças em mente, que seja um pouco denso demais pra uma criança tirar proveito total. Os pequenos que observei na minha sala de cinema divagaram por completo durante toda metade final do filme, ou mexendo no celular ou conversando com seus amigos durante piadas que eles não conseguiram entender. Acontece. Mas mesmo assim a exposição a assuntos complexos como os retratados em “Barbie” pode fazer valer a experiência.

Essa experiência que por sinal é uma que espero presenciar durante muitos outros blockbusters que vem por aí. Espero mesmo que Hollywood tome notas do filme de Gerwig e Baumbach.

“Barbie” é um filme de estúdio altamente inflacionado por um orçamento enorme de produção e marketing? Sim. É um filme feito com fins comerciais e que vai inspirar uma infinidade de outros longas-metragens com o intuito de vender brinquedo ? Com certeza. Mas por trás de toda essa fachada de plástico, os idealizadores de “Barbie” conseguiram dar um significado relevante, um bom motivo pelo qual a distribuição de larga escala como a de um blockbuster deve ainda existir nesses moldes: inspirar mais e mais gerações ao redor do mundo a encontrar o seu lugar, seja ele aonde for.

  • Nota
4

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