Cine PE 2019 | Vidas Descartáveis
“Um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotos”. A frase do cineasta chileno Patrício Guzmán foi repetida incessantemente no eloquente discurso do diretor Alexandre Valenti, que recebia o Prêmio Especial do Júri, “pela relevância e urgência do tema abordado, pelo olhar sensível e a contribuição ao combate do trabalho escravo moderno no Brasil”, em seu longa documentário “Vidas Descartáveis”, que dirige ao lado de Alberto Graça.
O reconhecimento é válido, já que, naquela altura da noite de premiações do Cine PE 2019, o documentário era o único dos seis filmes exibidos na Mostra Competitiva de Longas-Metragens que não havia levado nenhum troféu Calunga para casa. De fato, não é uma obra de esmero técnico, de linguagem cinematográfica exercida com puro êxito, mas, como #Procuram-se Mulheres, de Rozzi Brasil, é o tipo de produção onde a premiação significará algo. O maior triunfo da curadoria da 23ª edição do festival – de qualidade superior ao ano passado, que tinha propósito de reconstrução temática e política após inúmeras polêmicas no ano de 2017 – foi justamente trazer uma coleção de filmes de cunho social e político que se interligavam tematicamente na noite, mas também no escopo geral do festival. Seus discursos e apresentações eram um show à parte, dando um espaço para que pessoas dos mais variados lugares do Brasil, das mais variadas classes sociais – que não teriam a chance de apresentar a si mesmos e seus trabalhos – pudessem trazer parte de seu contexto para o festival. Foi uma edição que forneceu oportunidades e espaço para diferentes vozes.
E é este o trabalho documental feito por Valenti e Graça em “Vidas Descartáveis”: ao abordar a temática do trabalho escravo moderno no Brasil – último país a abolir a escravidão – sob suas diversas facetas (social, econômica, política etc), o documentário lança luz às práticas de aliciamento e tráfico de seres humanos e expõe as condições precárias de trabalho no campo e na cidade resultantes das dinâmicas migratórias movidas por falsas promessas de melhoria de vida. O que acontece, aqui, é basicamente uma narrativa que se viu no resto do festival, onde os cineastas trazem ao público vozes que não seriam escutadas – ou sequer notadas.
Os casos mais notáveis vistos aqui são a de imigrantes latinos que confeccionam roupas para marcas famosas, e o da Fazenda Brasil Verde, no Pará, que ocorreu no final dos anos 90. Apesar de ter recebido cobertura em emissoras de tv, é incrível como tais acontecimentos frequentemente se perdem no tempo. Revisitamos, então, muitos dos trabalhadores que sofreram no acontecimento, e seus depoimentos são comoventes. Humildes e, muitos deles analfabetos, eles relatam que não tinham plena noção do que ocorria, e quando perceberam, já era tarde demais.
Já que foi mencionado a questão da cobertura midiática, é curioso notar como “Vidas Descartáveis” por vezes parece um especial para a tv; as imagens de arquivo e recortes de jornais surgem na tela com uma trilha escandalosa de conspiração, aos costumes de um programa investigativo; os planos aéreos, feitos com drones (e o uso excessivo, descuidado dos mesmos em produções recentes deve ser discutido) são alongados e parecem existir apenas para atribuir alguma grandiloquência cinematográfica para a situação. Tais artifícios não são necessários – ou poderiam ser melhores utilizados -, já que a situação já é absurda por si só.
Essa é a maior força de “Vidas Descartáveis”, o espaço para que estes trabalhadores contem suas histórias, voltando ao discurso de Valenti na aceitação do Prêmio Especial do Juri, trazendo novamente essa questão em evidência para que nunca seja esquecida. A nossa história merece ser preservada e relembrada, mesmo que, às vezes, seja de maneira preventiva para que atrocidades como as vistas aqui nunca mais se repitam.