O que pode significar Jeremias 11:11 em "Nós"? | Crítica
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O que pode significar Jeremias 11:11 em “Nós”?

Antes de me aventurar em um ambiente de explicações e interpretações de uma obra, preciso fazer um disclaimer acerca desse tema. Quem me conhece sabe o quanto eu critico essa onda de “filme X explicado”, e não me refiro a alguém gravar um vídeo sobre sua interpretação de uma obra, e sim sobre a pretensão de “explicar” um filme como se houvesse uma verdade por detrás da obra onde a pessoa a encontra, desvendando assim o grande segredo dela.

Isso simplesmente não existe. Um filme não deve ser encarado como um game que exige resoluções dos desafios propostos. Esse texto jamais promoverá uma explicação do filme. Tampouco a leitura deste lhe fornecerá material para “entender” filme. O objetivo e estender o debate e trazer um camada do filme “Nós” que muito me chamou a atenção. Feito o disclaimer, vamos falar da nova obra de Jordan Peele.


Nem precisaria dizer que esse texto terá spoilers mas de qualquer maneira, fica o alerta.


Quando eu sai da exibição de “Nós”, uma coisa não me saia da cabeça: o que Jordan Peele queria nos dizer com aquele texto bíblico de Jeremias 11:11? Essa instigação foi similar ao que senti ao assistir “Magnólia” de Paul Thomas Anderson e o famoso texto de Êxodo 8:2 (spoilers virão a seguir). Em “Magnólia” o texto tinha uma mensagem bem explícita sobre uma praga que cairia sobre os egípcios e que seria revelada ao final do filme: “Se você continuar se recusando a deixá-los ir, atingirei todo o seu território com uma praga de rãs”. Além disso, o filme tem uma forte ligação com o número 82, tendo o 8 como um número que representa ciclicidade ad infinitum dos infortúnios e acasos propostos pelo filme. Caso queira saber mais sobre esses detalhes, recomendo o texto do Pablo Villaça sobre o tema.

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Repare no número 82 ao lado esquerdo do personagem

Existe então um significado literal e outro simbólico para esse texto de Êxodo. Isso me fez ver Jeremias 11:11 em “Nós” do mesmo jeito. O significado simbólico é bem explícito no filme ao mostrar o espelhamento do número 11 / 11. Ou seja, para cada 11 há outro equivalente do outro lado, assim como para cada pessoa havia uma “sombra” correspondente em um submundo. Aliás, esse símbolo é mostrado desde antes das tais “sombras” aparecerem, como é possível observar nessa imagem abaixo onde vemos um plongee evidenciando as sombras de cada personagem que acompanha seu equivalente por onde quer que ele vá.

As sombras são muito maiores que os próprios personagens evidenciam sua influência dentro da obra.

Mas nada nesse filme deve ser encarado com tanta simplicidade, afinal, o tema central do filme não é apenas e tão somente nosso espelhamento, e sim o nosso medo e paranoia que muitas vezes são alimentadas pelos nossos próprios desejos e ansiedades. “Nós” mostra uma sociedade, no caso a americana, que vive sob uma paranoia alimentada por eles próprios e sua teorias da conspiração. Há inclusive um momento no filme em que a filha do casal, Zora, comenta uma teoria em que o Governo Americano envenena a água para controlar a mente dos cidadãos.


A cena pode até ser vista como alívio cômico, mas ela esconde dentro de si uma forte crítica a grupos conspiratórios que espalham o medo levando pessoas a acreditarem que vacina mata, que o comunismo ameaça o país ou que a “grande mídia” conspira contra seu presidente. Aliás, a última eleição que elegeu Donald Trump foi toda conduzida sobre o viés paranoico desses grupos, o que não está muito distante de nós. O medo é algo nos paralisa e por vezes nos faz voltar para trás socialmente falando.


Certo, mas o que tudo isso tem a ver com Jeremias 11:11? Abra sua cabeça e se jogue. O livro de Jeremias 11:11 fala sobre um pacto que Deus fez com a nação de Israel. Depois que essa nação deixou de cumprir sua parte no pacto, o profeta Jeremias escreve o seguinte: “Portanto, assim diz Jeová: ‘Estou trazendo sobre eles uma calamidade da qual não poderão escapar. Quando clamarem a mim por socorro, eu não os escutarei’. “


Esse texto fala sobre Deus abandonar a nação de Israel por descumprirem o pacto feito com eles por meio de Moisés. Essa informação teria pouca relevância se não estivéssemos falando de um país cujo o lema oficial é “In God we trust” ou “Em Deus nós confiamos”. Sim, os Estados Unidos são uma nação cristã que tanto em “Nós” quanto em Jeremias 11:11 é abandonada por Deus. Porém o mais significativo é entender o porque dessa nação ter sido abandonada. A resposta está nos versículos 12 e 13 que diz “Então as cidades de Judá e os habitantes de Jerusalém irão aos deuses aos quais oferecem sacrifícios e clamarão por socorro, mas estes de modo algum os salvarão quando chegar a sua calamidade. Pois os seus deuses se tornaram tão numerosos quanto as suas cidades, ó Judá; e tão numerosos quanto as ruas de Jerusalém são os altares que vocês fizeram para a coisa vergonhosa, altares para fazer sacrifícios a Baal”.


Jeremias mostra que a nação de Israel passou a adorar outros deuses como por exemplo Baal. Aplicando o mesmo princípio ao filme, para quem a nação americana passou a oferecer sacrifícios? Podemos citar 3 sacrifícios: o primeiro é o que já estamos comentando desde o início do texto; o medo e a paranoia que desde antes da Guerra Fria já influenciava o país conforme Richard Hofstadter, acadêmico americano, professor da Universidade de Columbia, e autor do artigo-ensaio intitulado The Paranoid Style in American Politics (O estilo paranoico da política americana, 1964), que diz que a paranoia americana é uma “gigantesca e sutil máquina de influência” que tem como meta a “destruição do modo de vida americano”.


Também podemos citar a violência como bem aponta o crítico Matheus Fiore: “há uma normatização da violência, que não é embelezada ou glorificada, mas também não é jamais um elemento estranho para os personagens”. Ou seja, um desses deuses pagãos da sociedade americana é a violência institucionalizada por uma política armamentista que mata e continua matando. Outro deus pagão do americano é a ganância representada pela família Tyler e seus bens ostentosos como a mansão high-tech, a lancha monumental e o carro exuberante. É a cultura da prosperidade fútil e mesquinha, que coloca seus detentores como seres superiores.


Naturalmente este é apenas um detalhe dentre tantos que esse filme traz consigo. Mas para começar a falar deles é preciso observar um pouco do contexto em que o filme se passa. Dessa forma “Nós” ganha potência em sua mensagem e peso em sua narrativa, abrindo possibilidades de novas percepções acerca da obra. Não se prenda a essa visão em detrimento das suas. Sofrimento, medo, Mito da Caverna de Platão, isolamento social, violência… tudo está presente na obra, a disposição para múltiplas visões.

Tem alguma para compartilhar? Deixe nos comentários e vamos trocar uma ideia sobre o que você absorveu do filme. Se quiser saber mais, eu tenho um vídeo-ensaio onde falo um pouco mais sobre a construção narrativa que Jordan Peele propõe à obra. Fica o convite aberto.

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