Crítica: Muribeca – Cine PE 2021 - Cinem(ação)
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Crítica: Muribeca – Cine PE 2021

Muribeca – Cine PE 2021

Sinopse: Diante da iminente transformação de seus lares em uma verdadeira cidade fantasma, moradores do Conjunto Habitacional Muribeca expressam a morte física de uma comunidade ainda viva na memória e nos sentimentos. O desaparecimento do bairro (em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco), devido a problemas estruturais, à especulação imobiliária e a um longo e turvo imbróglio entre moradores e órgãos responsáveis pela obra, é testemunhado a partir de resiliências e resistências, de paisagens afetivas e lembranças, que ora buscam abrigo na nostalgia, ora reacendem a chama resoluta da esperança.
Direção: Alcione Ferreira & Camilo Soares
Roteiro: Alcione Ferreira & Camilo Soares
Produção: Camilo Soares
Direção de Fotografia: Alcione Ferreira & Camilo Soares
Montagem: Paulo Sano
Trilha Sonora: Lucas D´Ávila, Tony Frevo, Flora Vontade
Edição de Som: Adriano Leão
Som Direto: César Ricardo
Direção de Arte: Flavão
Designer: Zianne Torres
Elenco: Lucas Ávila, Dona Inês, Suellen Vasconcelos, Charles Henrique, Miró, Marcelo Trindade, Seu Genival, Davidson Silvestre, Seu Assis, Ozael Lopes, Leonia Valquíria, Flavão, Manina Aguiar, Tony Frevo, Charly du Q, Betânia da ACB, Banda Flora Vontade, Carmen Lúcia Lopes, Alexandre Valdevino, Manoel Carlos.

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“Afeto é um lugar político”, diz uma moradora em certo momento do documentário Muribeca, de Alcione Ferreira e Camilo Soares. A frase é forte e até esclarecida porque deixa explícito, em mais de uma camada, o que se tornou a realidade dos moradores do Conjunto Habitacional Muribeca, bairro localizado em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, que, devido à gentrificação e especulação imobiliária, foi abandonado. É um ato de desprezo do estado que obriga os moradores a se mudarem para que o bairro dê lugar a possíveis construções comerciais e condomínios caros. Seus moradores foram obrigados a assistir a deterioração do bairro ao ponto do esquecimento, e as lembranças carinhosas envolvendo cada rua e casa se tornaram meros fantasmas de um local em ruínas explorado pela gentrificação.

O filme de Ferreira e Soares é um registro repleto de depoimentos desses moradores, dos relatos que vão de melancólicos a bem-humorados, sobre os tempos atuais e do passado. Em cada pessoa, uma história e uma vivência. Os corpos das casas e construções se confundem com os dos moradores, também deteriorados pelo tempo e pelas lembranças de uma era onde o local era povoado de vida.

Evocam-se, nas imagens capturadas, lugares como Detroit, nos EUA (a “cidade falida”, abandonada por crises e desempregos). Os diretores abordam as histórias vistas aqui pelo caminho das entrevistas, com relatos verbais dos moradores entrecortados com a exploração desse bairro, frequentemente em planos estáticos, e imagens de arquivo em VHS. Quando existe esse contraste dos segmentos em VHS, com algumas das filmagens feitas em jogos da seleção brasileira de futebol ou no carnaval, Muribeca instiga e até mesmo diverte, e o choque que ocorre quando voltamos às ruínas atuais é eficaz. É quando compartilhamos a sensação de nostalgia e melancolia que os moradores que permaneceram no bairro possuem – uma qualidade do efeito provocado pela direção de Ferreira e Soares no espectador. Mas é interessante como a raiz dessa sensação se transmuta ao decorrer do filme. A força dos relatos pessoais ainda está presente (eles nunca deixam de comover ou indignar), mas o filme como estudo de um luto ou análise social se enfraquece pela repetição desses lamentos, por uma exaustão que vem dessa repetição. Isso ocorre muito pela abordagem formal do filme, e a falta de variação dessa abordagem de repente transforma os segmentos de VHS num respiro dentro da narrativa, como se ficássemos contentes com essa exploração do passado não mais tanto pelo elo criado com as figuras da obra – um elo que existe pela própria atenção às dores e memórias de cada um –, mas sim pela quebra da cansativa estrutura na qual as histórias são abordadas no filme.

E os momentos onde Muribeca “quebra” essa estrutura evidenciam como os diretores poderiam se adentrar, se arriscar e explorar mais as possibilidades da forma e de contar essa história, como no momento onde a entrevista de um morador é interrompida por um céu nublado e a chuva que chega desavisada – um momento imprevisível e poderoso. Imagens evocativas como o plano de uma placa com “volte sempre” escrito nela enferrujado pelo efeito do tempo são capturadas, e o filme se beneficia muito dessa relação crua e física dos registros que faz silenciosamente. Outro momento notável é a retroescavadeira – monstruosa por natureza – destruindo uma casa com seus grandes dentes de metal. Os diretores fazem a “intervenção mor”: retrocedem o filme que assistimos de forma que a casa se reestruture, uma correção da própria realidade. Momento desconcertante.

No entanto, ao final, a intenção da proposta entre as viagens ao passado nostálgico e o retorno ao futuro deprimente ameaçam atingir o protocolar. É um desses casos em que entendemos a humanidade e o louvável apego de seus realizadores a cada uma das histórias e variados recortes individuais visitados aqui, mas eventualmente existe o desgaste da repetição destes sentimentos que acaba enfraquecendo o poder da obra e os registros feitos em Muribeca. Contudo, em determinada cena, uma personagem diz: “Minha avó tem Alzheimer e ela pensa que ainda está no conjunto Muribeca”. O nó na garganta se instala, pois no trabalho documental esses momentos humanos transcendem as deficiências evidentes da estrutura, puxando de volta a atenção. Não tem jeito: é sempre a humanidade que nos traz de volta.

  • Nota
3

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