Crítica: The Second Act - Festival de Cannes 2024 - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
3 Claquetes

Crítica: The Second Act – Festival de Cannes 2024

The Second Act (Le deuxième acte) – Ficha técnica:
Direção: Quentin Dupieux
Roteiro: Quentin Dupieux
Nacionalidade e Lançamento: França, 2024 (Festival de Cannes)
Sinopse: Florence quer apresentar David ao seu pai. Mas David não se sente atraído por ela e quer jogá-la nos braços de seu amigo Willy. Os personagens se encontram em um restaurante no meio do nada.
Elenco: Léa Seydoux, Louis Garrel, Vincent Lindon, Raphaël Quenard.

.

Há um ano, Cannes abria o Festival com um filme protagonizado por um ator acusado de agredir sua ex-mulher em um divórcio mais do que exposto pela mídia, com direito a audiências televisionadas e um frenesi nas redes sociais. A retaliação dessa escolha veio de imediato, com diversas matérias à época criticando veementemente o Festival e agora, meses depois, com uma série de acusações de assédio sexual dentro do núcleo de funcionários e pessoas influentes do Festival de Cannes, algo que tem sido “mascarado” por meio de algumas escolhas diferentes este ano: uma presidente de júri bastante popular como Greta Gerwig e uma Palma de Ouro honorária à Meryl Streep logo na cerimônia de abertura, com direito a um discurso emocionante (e de tom bastante feminista) feito por de ninguém menos que Juliette Binoche.

Vale pontuar também que o filme que inaugura o Cinema de La Plage esse ano é um curta sobre assédio e abuso sexual, o “Moi Aussi” de Judith Godrèche. É evidente que Cannes tem escolhido filmes que se impõem enquanto uma reação às tantas questões polêmicas expostas à mídia. Nesse sentido, a escolha por “The Second Act”, de Quentin Dupieux, como filme de abertura parece seguir a mesma lógica. A comédia ácida do diretor francês soa como uma reação a um mundo cada vez mais complexo, uma indústria em processo de enorme mudança e um Festival cada vez mais cobrado pelas suas posições e escolhas.

Na trama, quatro atores interpretados por Léa Seydoux, Louis Garrel, Vincent Lindon e Raphaël Quenard, estão gravando o primeiro filme feito inteiramente por inteligência artificial. O diretor de IA dirige o filme a distância, os atores têm um tempo restrito de trabalho e suas cenas podem ser editadas por corretores automáticos quando as falas não seguem exatamente aquilo que o algoritmo diz ter maior probabilidade de sucesso. A longa cena de abertura já deflagra em um diálogo bastante cômico dois dos pontos nevrálgicos do filme sendo estes: 1) a metalinguagem, ao evidenciar a presença da câmera no espaço e 2) seu absurdismo, diante do qual nenhum tema por mais delicado que seja estará isento de se tornar motivo de piada.

Desde “Yannick”, a metalinguagem já parecia ser um tema de interesse do diretor. Neste trabalho anterior, somos colocados no lugar da plateia a qual assiste o conflito entre o espectador e a peça sem saber para onde seremos levados, em uma crescente de eventos absurdos. Já em “The Second Act” a ideia segue essencialmente a mesma, exceto por um diferencial: estamos imersos no cinema. A plateia não existe de forma corpórea ou metafórica dentro do filme, mas sim na quebra desta quarta parede, nesta comunicação direta que acaba sendo uma forma de refletir sobre a profundidade dos tantos temas retratados trazendo o público para dentro dessa conversa.

Como disse, nenhum tema está isento de ser alvo das piadas de Dupieux. Piadas sobre estereótipos homossexuais, transsexuais, capacitistas, de gênero e várias outras são trazidas para o filme na intenção de convidar o espectador a rir, sim, mas também para refletir. À sua maneira. Entre outros temas existem ainda, na indústria, a precarização do trabalho artístico frente ao surgimento de novas tecnologias, a insistente discussão sobre a separação da obra do artista e, claro, o “cancelamento”.

A sátira de Dupieux é marcada pela naturalidade das atuações em suas transições entre “personagens” e “pessoas reais”, o que corrobora para a discussão central do filme sobre a linha entre a ficção e a realidade, em um cenário onde a ficção parece mais a realidade que o contrário. O seu desfecho tem forte impacto e acaba tornando o discurso do filme cristalino. Apesar de verborrágico e algumas vezes cansativo pela mesma razão, a forma como o cinema e o futuro desta arte frente a tantos questionamentos foi pensado é realmente muito interessante.

É um bom filme, sem dúvidas melhor que o “Yannick”. Ainda, acredito que tem capacidade de provocar opiniões divididas sobre a sua abordagem, o que na minha opinião só deixa a obra ainda mais empolgante. Está na hora de pensar o cinema, seu futuro e seus temas. Como o Festival de Cannes e todos os participantes dessa cadeia possuem sua parcela de culpa nesse momento, também.

  • Nota
3.5

Deixe seu comentário