Crítica: Espumas ao Vento - 55º Festival de Brasília
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Crítica: Espumas ao Vento – 55º Festival de Brasília

Espumas ao Vento – Ficha técnica:
Direção: Taciano Valério
Roteiro: Taciano Valério, Vanderson Santos
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2022 (55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro)
Sinopse: Uma catástrofe durante o espetáculo de uma trupe de artistas redefine a vida de duas irmãs. Ambas convivem com as consequências do acontecimento, lembranças, sonhos e desejos suspensos no ar. Enquanto isso, um pastor planeja expandir o reino de deus na terra.
Elenco: Rita Carelli, Patrícia Niedermeier, Odécio Antônio, Tavinho Teixeira, Everaldo Pontes, Mestre Sebá.

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Na quadrilogia distópica de 2019 a 2022, o Brasil vive toda sorte de acontecimentos: desmatamento crescente, desabastecimento alimentar, depauperação da cultura, descolamento da realidade por meio de notícias falsas, democratização do acesso à armas de fogo, corrupção institucionalizada, negligências durante uma pandemia, prevaricação das instâncias judiciárias, enriquecimento de bilionários, ampliação das desigualdades, empoderamento de um cristianismo fundamentalista às avessas e, claro, a normalização da barbárie. Para cada absurdo, a Arte providencia uma reação, sempre de contestação, crítica ou de renovação de esperanças – e é justamente essa capacidade dialógica que nos manteve sustentados enquanto indivíduos durante as agruras recentes.

É nesse espírito que os realizadores, incluindo o diretor Taciano Valério, do longa-metragem pernambucano Espumas ao Vento (Idem, 2022) o apresentaram à plateia do 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro na noite desta terça-feira, 15/11. Não é preciso dizer que o próprio conteúdo do filme também se introduz com esta roupagem, introduzindo um grupo de artistas teatrais surpreendido por uma tragédia sem precedentes e motivada por algumas das vicissitudes citadas no parágrafo inicial deste texto.

Desde o início, o projeto adota uma postura combativa aos discursos e práticas correntes no Brasil ultimamente. Primeiro, na metade preliminar da narrativa, ao evidenciar o cotidiano, o espírito genuinamente alegre e livre de uma trupe de artistas mamulengos e, segundo, ao espelhá-lo em no grupo evangélico da igreja Baralho de Deus, que faz de seu ofício a encenação de possessões demoníacas como estratégia de manter um público cativo.

Ao inserir essas situações por meio de entrecortes imediatos, Valério e o montador César Caos propõem uma comparação e, em certa medida e para propósito específico, também uma equiparação, já que os dois núcleos tratam da encenação como mecanismo de ganhar a vida, como também vivem da representação, do fingimento, do faz de conta, para manter uma plateia cativa. A distanciamento entre os grupos, todavia, acontece no propósito final: enquanto os atores se dedicam a produzir Arte que entretenha e promova a difusão cultural, os intérpretes da escola de possessão têm por finalidade a obtenção de lucro e a consequente domesticação pela fé.

A mistura de sensações, tonalidades e ritmos do prólogo logo cede espaço a uma aura enlutada após a meia hora inicial. Então, quando essa ideia de representação começa a arrefecer e é trocada por outra atmosfera, o longa-metragem perde parte considerável de sua força rítmica e narrativa, ainda que esse ralentar ajude a compreensão e a progressão argumentativa do texto. O clima pesaroso surge em cenário que mescla a devastação provocada pela pandemia à neopentecostalismo que parece ter substituído as expressões artísticas e ocupado todos os locais em que a disseminação delas seria possível.

O grande ponto a que chega Espumas ao Vento em seu derradeiro ato, após passar pela comédia, drama e mesmo o suspense, é ao retomar a ideia de representação, mas um tipo de representação arisca, combativa, radical, contestadora e férrea, que exponha as pequenezas humanas, cobre uma mudança e reivindique a posição do artista como legítima dentro da sociedade. O caminho para essa constatação não é simples, tampouco retilíneo, mas a jornada oferece boas provocações e metáforas condizentes com o estado de coisas do Brasil distópico que, esperamos, está prestes a se transfigurar para um animal menos dantesco.

Texto escrito por: Júlio Cézar Rodrigues

  • Nota
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