Crítica: Uma Mulher Fantástica (2017)
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Crítica: Uma Mulher Fantástica (2017)

Se em “Gloria” (2013) Sebastián Lelio discute sobre a velhice e desprendimento de uma mulher dessa pressão social em relação à idade, em “Uma Mulher Fantástica” (2017) ele direciona suas lentes para a observação do preconceito enraizado sobre a transexualidade. Feito de forma respeitosamente sábia, as exposições estão nas cores inspiradas em Almodóvar, nas circunstâncias dolorosas que a heroína enfrenta ao longo, mas jamais no físico da protagonista. Aliás, a cena símbolo aqui e eternizada como uma referência no que diz respeito ao tema, é quando Mariana está deitada em uma bandeira e ao invés de vermos a sua genitália, percebemos que ela segura em suas mãos um espelho, que mostra o reflexo do seu rosto. A mensagem óbvia e que o mundo teima em recusar: de fato, somos todos humanos e isso deveria bastar.

O filme começa e apresenta um casal, Marina (Daniela Vega) e Orlando (Francisco Reyes), aparentemente funcionam bem juntos, mesmo com a visível diferença de idade. Eles nutrem a esperança do compartilhamento, pronunciam e manifestam as expectativas para uma viagem, transam com intensidade. Até o momento que Orlando falece. Esse fato diminui o muro que divide Marina do resto do mundo, ela se vê aprisionada em um espaço curto e o fato de estar sozinha a afronta, ainda que não seja o bastante para destruí-la. Passaremos a observar a jornada de uma mulher que possui uma história com alguém e, de súbito, tudo é desmoronado, a vida que achou ter, passa a ser uma ilusão distante – nesse ponto o filme é inteligente ao inserir rápidas cenas oníricas que não só representam o estado psicológico da personagem principal, como também referenciam o acontecido catastrófico e que dá o início ao processo de reflexão do longa – e se não bastasse o ocorrido e a sensação de que um pedaço dela despedaçou e saiu voando, essa sensação de perda de identidade é muito mais agravante por conta de ser uma mulher trans. Essa marcha fúnebre acontece diariamente por conta de uma sociedade que tenta desesperadamente classificar tudo, inclusive as opções e identidade da outra pessoa, como se o fato de existir e “ser” não fosse o suficiente. A morte de Orlando traz a tona uma luz de realidade perversa a qual Marina conseguia se esconder atrás da paixão; depois um ser humano caminha em carne viva e olhares julgadores, curiosos, tratamentos cautelosos, são algumas das coisas que agridem profundamente o coração da mulher fantástica.

E apesar de ser comum essa linha de desenvolvimento em filmes que abordam o tema, por exemplo em Laurence Anyways (2012) do Xavier Dolan, é sempre importante que haja obras artísticas que atinjam a pluralidade e converse diretamente com o espectador, mostrando a realidade de tais conflitos sociais e como isso afeta pessoas. Por isso o rompimento entre a naturalidade de um casal feliz e uma mulher diante a um mundo árido é tão impactante, a mudança é muito violenta.

Se há morte em “Uma Mulher Fantástica”, é importante ressaltar que o maior luto é o social, onde pessoas bem afortunadas proferem que “mamíferos têm empatia” enquanto manifesta justamente o oposto. E às vezes acontece de forma tão inconscientemente, que só prova ainda mais a falta de sensibilidade do meio em relação ao humano, com todas suas camadas e conflitos. Qual o ponto que transforma um indivíduo em uma criatura que olha mas não sabe o que vê, mesmo que na sua frente se encontre um ser completamente desarmado? e a bestialidade encontra o seu lar no momento que uma mulher fantástica, como todas as mulheres do mundo, mas que ainda não sabe, diz que Marina é uma Quimera. Será que ela desconfia do enorme significado que existe nessa palavra? Começando pelo peixe distante, que vive em águas profundas, passando pelo científico até a figura mitológica híbrida de dois ou mais animais, contudo, de todos esses significados, nenhum é mais forte e real do que o utópico. É na utopia que nos apoiamos em momentos de sombras, é nela que existe igualdade e os reflexos do espelho mostram somente a verdade, a minha e a sua.

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