Crítica: Clímax (2018)
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Crítica: Clímax (2018)

Gaspar Noé traduz há mais de uma década o espírito da inovação tecnológica unido com uma perspectiva alucinógena da vida e as conexões com a movimentação de câmera. Seu olhar é tão poético quanto agressivo, transforma o caos em seda aos olhos, qualquer ideia pode ser traduzida pelas lentes e movimentações circulares de Noé – tal como a própria condição de existência, compartilhada ou não. Em Clímax (2018) ele abdica do choque explícito e utiliza os artifícios técnicos e fotografia para compor a experiência mais eletrizante do ano. Uma viagem infernal, embriagada e nefasta que sintetiza não só a leviandade juvenil, como a sua total desconstrução psicológica.

Se existe um diretor que mudou a minha forma de pensar criativamente – principalmente no que diz respeito ao audiovisual – esse nome é Gaspar Noé. Sua mente opera em uma energia criativa impressionante, ele flexibiliza não só a parte visual, como o roteiro, de modo que as consequências se tornam uma experiência insana e catastrófica para quem assiste. Diferentemente de Lars Von Trier, o choque em Gaspar Noé existe (ironicamente) mais na forma que ele conduz a narrativa, do que no conteúdo geralmente tão intenso quanto.

Fotograficamente seus filmes são vislumbres urbanos-caóticos-sujos, existe poesia na violência e seus quadros trazem sangue, sexo, gozo a cada instante, ainda que nem sempre literal. É um artista selvagem que constrói e orquestra o inferno tal qual Dante o fez em seu clássico “A Divina Comédia”.
Em Clímax (2018), Noé abdica do explícito para conduzir uma trama em base ao movimento corporal – que distorce a naturalidade passiva do corpo, assim como o diretor faz com a vida – e cria um ritmo alucinante em base ao álcool; toda essa experiência é conjunta, íntima, provocativa, bem como próprio cinema (deveria) ser.

Em um plongée vemos uma personagem se contorcendo de dor, manchando o branco da neve com o vermelho do seu sangue. A primeira cena é o final do arco da história, o diretor costuma dialogar muito com a passagem de tempo e descaso do contexto dos acontecimentos. Indo e vindo como se fosse natural perder-se em meio às horas, dias, meses. “O tempo destrói tudo”, já diria um de seus personagens mais famosos, o “açougueiro” vivido pelo Philippe Nahon em “Carne” (1991), Sozinho Contra Todos (1998) e Irreversível (2002).

Depois dessa introdução todos os personagens são apresentados pela televisão, rodeada de livros e filmes – entre eles a evidente inspiração na direção de arte e atmosfera “Suspiria” (1977) e Possessão (1981). O fato de conhecermos a estrutura básica de todos eles através da TV soa como uma forma de dinamizar o processo, pois como são muitos bailarinos, fica nítido que é preciso encontrar um refúgio para desmistificá-los rápido afim de concentrar todo o processo de subversão nos seus corpos e perda lenta da lógica através da droga alucinógena que experimentam forçadamente.

Se na dança principal, logo no começo, mesmo apesar das diferenças performáticas, todos encontram uma comunhão através da arte, e é impressionante como a movimentação da câmera acompanha o ritmo com uma fluidez certeira, participando da dança e elevando a experiência de quem assiste a um degrau absurdo de concentração, cada minuto que passa essas mesmas diferenças se tornam agressivas e incômodas quando os sentidos passam a ser alterados. Se nessa cena a dança é filmada em um plano sem cortes, ao longo passamos a experimentar uma bad trip compartilhada sem cortes ou rodeios, de modo que a experiência pessoal de cada um e a obscuridade psicológica sirvam como signos de estranheza ao espectador que contempla visualmente o alucinógeno, mas se distancia dele enquanto experiência, desse modo é impressionante como tecnicamente o filme cria uma conexão entre todas viagens e desconexões, de modo a envolver-nos em uma experiência infernal.

Se o estilo da dança krump é agressiva, visualmente e fisicamente, quando a droga acessa as personas tudo se torna corrompido, os movimentos passam a simbolizar a psique, beirado uma viagem astral sem tempo (olha ele novamente) para acabar, onde a adrenalina enxerga a alma e os corpos rastejantes se tornam exatamente aquilo que foram projetados, a sexualidade bestial os possui e a transe impera. Ao passo que a identidade se perde, ressaltando a ironia no fato de que os jovens em sua pluralidade, seja de movimentos, racial, interesses etc, represente a diversidade da juventude francesa.

Clímax (2018) é uma fuga ao inconsciente, um pesadelo estético – as cores vermelhas ilustram a proximidade de conceitos tão diferentes como amor, perigo e sexo – e filosófico, onde a realidade é distorcida para se atingir o ápice do alucinógeno. O horror aqui é psicológico e ressaltado através da sincronicidade entre movimento corporal, estética, trilha sonora eletrônica e filmagem dinâmica, que faz experimentações além da obviedade ao registrar esse grande declínio em conjunto através de planos holandeses, movimentos de câmeras ondulantes e até mesmo cenas inteiras de cabeça para baixo, tudo para transmitir ao máximo uma experiência catártica, infernal e visceral, onde artes se confundem, assim como a diversidade social, e juntas são destruídas pela intensidade de Gaspar Noé.

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