Eu Cinéfilo #86: Por que o true crime brasileiro incomoda tanto?
Enquanto séries e podcasts estrangeiros sobre crimes reais fazem sucesso, produções nacionais como Tremembé enfrentam resistência e polêmicas

Quando o assunto é true crime, o brasileiro parece ter uma relação curiosa com o próprio reflexo. Basta uma produção nacional sobre casos reais ganhar destaque para que surjam críticas e debates acalorados. Foi exatamente o que aconteceu com Tremembé, série da Prime Video que se tornou, em poucos dias, a produção nacional mais assistida da história da plataforma. Baseada em crimes que marcaram o país, a obra dividiu opiniões: sucesso de público, mas alvo de questionamentos sobre “glamourização” do crime.
A série, dirigida por Vera Egito, recria os bastidores do presídio de Tremembé, conhecido como “a cadeia dos famosos”. Lá estão nomes como Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e Alexandre Nardoni, que continuam sendo lembrados pelo impacto de seus crimes. Ao transformar essas histórias em ficção, Tremembé não apenas revive casos chocantes, mas também força o público a encarar um espelho desconfortável, o de um país obcecado por tragédias, mas que não sabe lidar com elas quando a dor tem rosto conhecido.
Curiosamente, o desconforto diminui quando o crime vem de fora. Séries como Dahmer: Um Canibal Americano, Mindhunter e Making a Murderer, todas da Netflix, são consumidas com entusiasmo. Nos podcasts, o sucesso é ainda maior, Serial e Crime Junkie figuram há anos entre os mais ouvidos do mundo, inspirando centenas de produções derivadas. O público vibra com o suspense, elogia o roteiro e exalta a atuação dos atores, sem a mesma cobrança moral que costuma recair sobre as produções brasileiras.
Mas por que esse contraste? Parte da resposta pode estar na distância emocional. Quando o crime é norte-americano, britânico ou japonês, o espectador brasileiro assiste como quem observa um outro mundo. A dor, a violência e o horror parecem ficção, mesmo quando são reais. Já quando a história é nacional, ela tem sotaque familiar, paisagens conhecidas e lembranças ainda frescas. Isso desperta empatia, mas também culpa, vergonha e medo.
Existe também uma diferença na forma como essas histórias são contadas. As produções estrangeiras costumam investir em linguagem cinematográfica e narrativas investigativas, o que cria uma camada de “distanciamento artístico”. Já no Brasil, a proximidade entre os fatos e os personagens torna tudo mais cru, mais íntimo. É como se o público dissesse, “Posso assistir a um canibal americano, mas não quero ver uma brasileira interpretando Suzane Richtofen.”
Outro ponto é a forma como lidamos com a memória coletiva. O brasileiro tende a evitar revisitar tragédias nacionais, principalmente quando envolvem crimes familiares ou de grande repercussão. Existe um desejo de enterrar o passado, enquanto o mercado internacional transformou suas tragédias em narrativas, e de certa forma, em aprendizado social. Por aqui, ainda temos medo de parecer insensíveis por assistir a algo tão próximo.
Mesmo assim, o sucesso de Tremembé mostra que há um público disposto a discutir o tema. A série abre espaço para refletir sobre justiça, mídia e a forma como construímos vilões e vítimas. Não se trata apenas de recontar crimes, mas de entender como eles moldam a forma como enxergamos o país e a nós mesmos. O desconforto que ela causa talvez seja, justamente, o seu maior mérito.
No fim das contas, o que Tremembé escancara é a nossa contradição como espectadores, adoramos o suspense, mas tememos o espelho. Consumimos tragédias estrangeiras sem culpa, mas viramos críticos quando a história tem CEP brasileiro. E talvez o verdadeiro desafio do nosso audiovisual seja esse, aprender a olhar para as próprias feridas sem transformar tudo em tabu. Porque só quando encaramos o que nos assusta é que começamos, de fato, a entender quem somos.
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Texto escrito por: Sérgio Zansk