Eu Cinéfilo #85: A arte não redime, mas a arte resiste - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
Eu Cinéfilo

Eu Cinéfilo #85: A arte não redime, mas a arte resiste

Eu jamais irei concordar ou defender Roman Polanski, J.K. Rowling, Neil Gaiman ou Woody Allen enquanto figuras humanas. Suas trajetórias pessoais — marcadas por crimes, posturas questionáveis ou falas violentas — não podem ser relativizadas. Nenhum talento, nenhum gênio criativo, nenhum Oscar ou best-seller anula o peso de atos danosos. A biografia não pode servir de escudo moral. Ética não é acessório de gala.

Mas é preciso reconhecer um paradoxo doloroso: as obras que esses autores criaram não apenas sobreviverão a eles, como já se mostram maiores do que suas figuras. São criações que romperam gerações, estilos, e em muitos casos, revolucionaram linguagens, gêneros, até mesmo a percepção coletiva sobre o que é arte.

Polanski reconfigurou o cinema psicológico. Rowling acendeu a fagulha da leitura em milhões de crianças no mundo todo. Allen moldou uma estética urbana, irônica e existencialista. E Gaiman — ainda que o caso dele seja menos jurídico e mais debatido no campo ético — é uma força mítica da fantasia contemporânea.

É uma verdade incômoda: criadores morrem, mas suas criações resistem. Porque a obra de arte, uma vez lançada ao mundo, já não pertence mais ao autor — ela pertence à memória social, às interpretações do público, ao impacto que causa nos afetos, nos sonhos e nas consciências.

Por isso, é possível recusar o artista e, ao mesmo tempo, compreender a potência da obra. Não como celebração cega, mas como exercício crítico. Separar o autor da obra não é uma anistia moral. É, sim, um gesto de lucidez: a arte não redime ninguém — mas também não deve ser apagada sem que se compreenda seu legado.

O que a história nos ensina é que as grandes obras não dependem de seres perfeitos para nascerem. Elas surgem da experiência humana em toda sua complexidade — de suas contradições, suas falhas, e até de suas sombras. São o reflexo de um mundo imperfeito, mas, por isso mesmo, ainda mais digno de ser compreendido, enfrentado e transformado.

Uma sociedade ética não precisa destruir as pontes da memória para afirmar os limites da justiça. Pode — e deve — lembrar, criticar, refletir… e seguir transformando.

Afinal, como lidar com a beleza nascida do erro, do abuso ou da violência? E quem, afinal, decide quais criações merecem ser preservadas?

.

Texto escrito por: Sérgio Zansk

@cine.dende

cinedende.com.br

Deixe seu comentário

×
Cinemação

Já vai cinéfilo? Não perca nada, inscreva-se!

Receba as novidades e tudo sobre a sétima arte direto no seu e-mail.

    Não se preocupe, não gostamos de spam.