Crítica: O Quarto ao Lado
O Quarto ao Lado – Ficha técnica:
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar, Sigrid Nunez
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2024
Elenco: Julianne Moore, Tilda Swinton, John Turturro, Alessandro Nivola, Juan Diego Botto, Raúl Arévalo, Victoria Luengo, Alex Høgh Andersen.
Sinopse: Ingrid e Martha eram amigas próximas na juventude, quando trabalhavam juntas na mesma revista. Após anos sem contato, elas se reencontram em uma situação extrema, mas estranhamente doce.
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A neve está caindo sobre os vivos e sobre os mortos.
Em “O Quarto ao Lado”, Almodovar investiga a relação de duas mulheres com a morte – e consequentemente com a própria vida -, ao passo que coloca o espectador, mais uma vez, nesse lugar de pensar a moralidade e a ética por trás dos comportamentos humanos, agora sobre a eutanásia. Martha (Tilda Swinton) é uma mulher com câncer cervical em estágio três. Sem muita relação com a filha Michelle, sem companheiro romântico e com poucos amigos, ela se vê sozinha quando o câncer evolui para uma metástase no fígado e nos ossos.
É quando ressurge em sua vida uma antiga amiga, também jornalista e agora renomada escritora, Ingrid (Julianne Moore). Ex-repórter de guerra, Martha é completamente assombrada pelos fantasmas do seu passado, da relação com a filha até a forma como tratou seu ex-namorado Damian, porém se revela uma pessoa bastante destemida com o que irá lhe acontecer no futuro próximo. Diferentemente de sua amiga, Ingrid é uma pessoa que teme a morte profundamente – e até escreveu um livro inteiro sobre o assunto. Não tarda para que Martha faça uma proposta que Ingrid não consegue ter forças para recusar, algo como: “Decidi morrer e, quando isso acontecer, peço que esteja comigo no quarto ao lado.”
Entre fortes relatos reconstituídos em flashbacks e o ato de compartilhar tantas conversas profundas e íntimas sobre arte, vida, morte e crises ambientais e políticas, Almodóvar desenha, com seu elaborado esquema de cores, uma relação de duas mulheres solitárias com diferentes e, ao mesmo tempo, parecidas visões de mundo, as quais, antes de tudo, encontram-se na solitude e na defesa do livre arbítrio. Ingrid e Martha fazem uma renúncia ao julgamento, e soam exatamente como o diretor. Como em todo bom filme “almodovariano”, ao filmar à distância os conflitos éticos e morais, o diretor se exime de juízo de valor – são apenas pessoas.
Gosto de como a trilha sonora dita o tom do filme e manipula diferentes emoções com maestria, caminhando entre o drama e o suspense. A ansiedade excruciante da morte iminente versus o pesar da partida. Contudo, me irrita um pouco o quão verborrágico Almodóvar soa. Por adaptar uma obra literária, acredito que o diretor tenha sentido a necessidade de se manter fiel ao que diz o livro, mas esquece por vezes que um filme sempre deve dizer mais com a imagem. Sorte a dele que a atuação de duas grandes estrelas sustenta o que poderia vir a ser uma falha muito mais profunda e os primeiríssimos closes, tão maduros em sua decupagem, nos fazem esquecer da repetição exaustiva de algumas ideias.
É de se apreciar a construção da dinâmica das protagonistas, também, como reflexos uma da outra. A direção de arte que enfatiza vidros e suas duplas exposições faz com que esse jogo de cena seja percebido como um brilhantismo ainda mais significativo do que já é. Quase como enxergar-se em um espelho, mas de lados opostos. Com homenagens a melodramas clássicos como “Tudo Que o Céu Permite” de Douglas Sirk, o diretor espanhol homenageia cenas inteiras de outros filmes (a cena da janela do hospital, sobre a tal “neve roa”, para mim, é implacável em sua poesia), e também presta homenagem a outros que muito provavelmente influenciaram a sua ideia de cinema, como “Journey To Italy” de Rossellini e “The Dead” de John Huston.
No cinema de Almodóvar, que gênero é mais poderoso no cinema para lidar com nossos dilemas morais do que o melodrama? Essa é a porta de entrada para um universo em que os sentimentos são a força-motriz de nossas ações, mais que qualquer racionalidade. Nesse viés, o Leão de Ouro de Veneza em 2024 diz bem mais sobre nossas convicções e nosso futuro enquanto sociedade do que sua construção simplória pode parecer à primeira vista. A cena final nos atravessa como um golpe de faca dilacerante, mas de alguma forma acaba com um gosto muito mais agridoce do que amargo.
Na conversa que Ingrid e Damian, horas antes de Martha decidir tirar a própria vida, resta claro a ideia central da obra. É nesse momento que Almodóvar consolida seu filme, preenche as lacunas e o posiciona a obra no tempo ao discutir a fragilidade e vulnerabilidade do nosso estado atual em diálogos políticos sobre crises ambientais, climáticas, política e econômicas, lembrando-nos de um iminente fim do mundo, como se dissesse que, como Martha, estamos todos em um Titanic, um mundo sem salvação onde a maior prova de maturidade seria aceitar com serenidade o nosso inevitável e, cada vez mais próximo, fim.