Crítica: Ainda Estou Aqui – 48ª Mostra de São Paulo
Ficha técnica – Ainda Estou Aqui
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2024
Sinopse: A história de Eunice Paiva e da sua família que tem suas vidas mudadas completamente pela prisão e desaparecimento do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, na ditadura militar.
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As fortes emoções de Ainda Estou Aqui acabam sendo construídas a partir de como uma casa de luz é invadida pelas sombras, o filme constrói a delicadeza do seu sentimentalismo a partir de como o chiaroscuro – o contraste entre sombras e luzes – invade a casa de Eunice após a prisão do Rubens Paiva transformando aquele ambiente solar e afetuoso com o Super 8 se mesclando com o cotidiano mais comum possível nas suas caracterizações e de uma neutralidade mais tradicional na imagem (que ameaça fazer o filme cair num lado mais quadrado no começo – algo próximo de uma tradicionalismo televisivo mais certinho – porém logo isso é felizmente dispensado e o teor acadêmico do cinema do Salles vai pra um território mais inteligente de sensibilidade, secura e classicismo) na sua suavidade até tudo ser tomado pelos encontros e contrastes de trevas e luzes após a partida do Selton Mello.
A leveza do começo sai de cena, mas a suavidade persiste se encontrando com a tensão o filme inteiro em como Eunice é conduzida por exemplo pelos corredores da ditadura militar com a câmera a seguindo de maneira tão opressiva, tão próxima, quase a engolindo em planos longos e secos. A partir daí as dinâmicas todas se encontram entre um peso de dor e angústia que se mescla a esse afeto inabalável dos personagens em suas relações (algo que nunca vai deixar de existir mas está danificado pra sempre, assim como é a relação com aquela casa, que nunca vai deixar de existir mas sempre estará danificada): o uso dos espaços e o jeito que a Fernanda Torres é blocada corresponde muito a isso. A esse co–protagonismo que a casa ocupa que é salientado que é salientado no final. Um vazio sempre presente em cena abertas ou que ela observada fechada entre portas.
Walter Salles faz um filme tão sóbrio, tão contido nos planos, no tom e de uma condução tão fluida e econômica que os seus momentos mais levemente caricatos ou simplórios aqui e ali (o retrato da juventude da época parecendo incialmente uma reunião de estereótipos de arquétipos do momento como se estivéssemos vendo uma enquete ou aquela cena do cachorro meio programada de modo descarada pra ser “a catarse emocional”) passam rapidamente porque tem algo de tão emocionalmente seco em grande parte delas também, seja na sobriedade seca de muitas delas que impedem uma apelação ou num espirito mais mundano do realismo do filme que corresponde a algo mais orgânico, que logo depois eles se tornam questões muito “menores”, que nem pesam no todo.
Esse viés classicista bem tradicional mais inteligente do Walter Salles interdita possíveis apelações e uma condução mais burocrática com que o filme até flerta bastante, mas desvia na autenticidade da captura dos seus afetos familiares e sentimentais. É nas sombras, nos tons meio baixos que o filme encontra com a verdadeira emoção, seja nos jogos de luz, na potência da música instrumental, nos espaços e na sua organização dos planos e na localização dos atores que ele mostra um domínio de linguagem clássica e desse seu melodrama intimista. Se Central do Brasil é um filme de luz, de claridade, do dourado, esse é um filme sobre as trevas (mas sem nunca abandonar os pontos de luz e os contrastes ao redor dela) e sobre uma paleta de cores frias em que a secura tem que conviver com a beleza da vida. E a consciência da potência de Fernanda Torres nesse registro de dor, de gestos, voz e semblantes baixos (mas internamente intensos) e gritos pra dentro é muito bem utilizada em como ela é iluminada e colocada em cena. Atriz fantástica auxiliada por um diretor e por um roteiro que entendem muito bem que ela é o principal alicerce do filme no seu desenvolvimento focando no retrato da dor de Eunice mesmo que a história da família Rubens Paiva esteja sendo contada de modo extremamente mais “certinho”, mas que corresponde muito bem as dinâmicas familiares capturadas mais felizes ou deprimentes ou traumáticas capturadas tão bem por Walter Salles, Murilo Hauser e Heitor Lorega. O auxílio de um ótimo ator como Selton Mello e das excelentes figuras que fazem os filhos dos Rubens Paiva ajudam demais em compor esse universo todo também.