Crítica: Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2018)
Críticas

Crítica: Você Nunca Esteve Realmente Aqui / You Were Never Really Here (2018)

CAUTELA (Paulo César Pinheiro)

Se não te cuidares o corpo

Cuida teu espírito torto

Que teu corpo jaz perfeito

Se não te cuidares o peito

Cuida teu olho absurdo

Que teu peito tomba morto

Diante de tudo

Se não te cuidares, cuidado

Com as armadilhas do ar

Qualquer solto som pode dar tudo errado

.

Paulo César Pinheiro recita o poema acima toda vez que apresenta, junto com seu amigo e músico Eduardo Gudin, a música “Mordaça”. Uma crítica ácida ao homem em meio aos delitos do social, no entanto, o que mais encanta nessa canção é o indivíduo sendo violado em diversas instâncias, como se embriagado por uma força destrutiva a qual o leva para sua versão primitiva diante à iminente perigo. Se no exemplo de “Mordaça” o opositor ao homem é em muitas interpretações vista como a política ou sistema, em “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” podemos subverter tal antagonismo para a perda e morte. Um sujeito grande, desajeitado, chamado Joe (brilhantemente interpretado pelo Joaquin Phoenix) é um veterano de guerra que se encontra em meio à perdidão da existência realizando trabalhos como matador de aluguel e livrando mulheres presas para o comércio do sexo. A proposta do roteiro não é criar ação, muito menos que envolva a profissão do protagonista, a ideia é desenvolver a dor de um homem e como ele aplica isso no ato de matar e proteger. É um sujeito cuja sensibilidade oculta manifesta um ódio descontrolado pelos homens, e protegendo Joe “Cuida do teu espírito torto”.

Comecemos pelo título, “You Were Never Really Here” ou “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” sugere de maneira excepcional o âmago da obra, uma alma não pertencente ao mundo, cuja integridade física e emocional fora corrompida pela guerra e sangues derramados por ambição do poder. Depois de afastar-se da sua posição social, sobram apenas restos de um jovem que um dia fora, nosso herói passa a ser um verme que se rasteja com seus cabelos desalinhados e barba grande; é um espírito torno, cujo corpo adiposo e cansado proíbem a rápida assimilação da sua doçura, mesmo quando lhe resta somente a chance de livrar-se dos males através da bestialidade. Por isso a diretora Lynne Ramsay se atém à sugestão da violência, não a sua exposição, ainda que há cenas pontuais onde ela é perceptível, a intenção é provocar os sentidos mais íntimos, como que por ironia o filme nos conduz para o coração do protagonista e o quanto é gratificante… não matar, mas fazer parte de algo, ajudar alguma coisa a continuar existindo, mesmo que também não possua mais forças. Ele se encontra nas mulheres abusadas; ele encontra sua mãe nelas.

Aliás, sua mãe é um eixo central da trama, é apresentada assistindo o clássico “Psicose” (1950) – que por ironia apresenta uma mãe que não é, que já se fora e que existe somente na consciência do filho – e essa figura é tão distante, no mesmo tempo tão próxima e compactuado com o seu vazio existencial, que é possível interpretar que se tratam da mesma personagem. Quando ele tenta proteger a sua mãe, é como se representasse o fogo que mantém-se fraco dentro dele que queira vê-lo salvo depois que tudo desmoronar. Ambos são o próprio vazio. Estendendo, quando ele encontra a Nina (Ekaterina Samsonov), percebe que ela é a continuação da história da mãe, não no sentido literal, mas filosófico: a mesma ligação emocional que o deixa vivo, é possível alcançar através da liberdade de uma vida que teimaram corromper para sempre, é a própria esperança e amor.

A violência vai acontecer ou já aconteceu, isso torna o filme clássico e elegante, soando como uma pintura contemplativa, regada por bons simbolismos visuais como os espaços reduzidos que o personagem central é capturado e a trilha que oscila bastante, assim como suas emoções. Há também de se fazer uma menção crucial ao trabalho do excelente Joaquin Phoenix que dá ao seu personagem uma carga enorme de complexidade emocional, oscilando entre o lunático, psicopata, melancólico, sem nunca escorregar demais em nenhuma dessas faces. A cena onde tiram a Nina de perto dele, que a câmera se mantém estática em seu rosto e acompanhamos somente o olhar de Joe é inacreditável, pois visivelmente transcende os métodos comuns de atuação, é muito orgânico as transições e expressões, quando ele se transforma em besta é tão sutil e intimista que espanta, tamanha ousadia em não ser expositivo e consecutivamente manipular o espectador.

“Você Nunca Esteve Realmente Aqui” (2018) faz jus às comparações com Taxi Drive (1976), mas não se fecha apenas nela. Consegue ser onírico quando quer, sem deixar de lado a sua significação extremamente realista e que beira o caos social que vivemos, onde pessoas destroçadas caminham sem destino e tomam atitudes que refletem o seu estado psicológico sem a consciência real, vivenciando as experiências do impulso e sendo salvos pela ânsia em devorar o que quer que seja como modo de amenizar a dor da morte.

Deixe seu comentário