Crítica: Transe (Festival do Rio 2022)
Críticas

Crítica: Transe (Festival do Rio 2022)

Transe – Ficha técnica:
Direção: Carolina Jabor, Anne Pinheiro Guimarães
Roteiro: Carolina Jabor, Anne Pinheiro Guimarães
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2022 (Festival do Rio)
Sinopse: Luisa (Luisa Arraes) é uma jovem atriz que vive com seu namorado músico, Ravel (Ravel Andrade). Ela conhece Johnny (Johnny Massaro), um espírito livre, e os três vivem um relacionamento baseado no amor livre, quando um perigo iminente ameaça colocar o futuro de todos em risco.

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A História não nega, a juventude é e sempre foi esperança de dias melhores. A protagonista de revoluções, o retrato da rebeldia e a figura política que guia novos rumos político-sociais ao redor do mundo. Quando se organizam e protestam pelo que acreditam, não há barreiras que a juventude não possa transpor. No Cinema, eles estão na figura dos jovens rebelados em uma Paris moderna e revolucionária como em Os Sonhadores de Bernardo Bertolucci, na ousadia e vanguardismo presentes em movimentos revolucionários para a sétima arte como a Nouvelle Vague, sob os olhares de Godard e Truffaut e este ano, no Festival do Rio, se fizeram presentes no filme Transe, dirigido por Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães.

O filme, que nasceu sem roteiro, se guia por eventos reais (matérias de jornais, áudios de entrevistas, imagens de protestos do movimento Ele Não em 2018), enquanto conta a história fictícia de três jovens politicamente engajados vivendo um romance não-monogâmico no centro do Rio de Janeiro. Ao estreitar as linhas da ficção e não-ficção, o filme se revela pouco a pouco como um manifesto político do nosso momento histórico o qual, ao mesmo tempo que critica ferrenhamente o atual governo, também traça uma autocrítica necessária sobre a esquerda “cirandeira” e o deslocamento desse grupo da realidade, o qual aponta viver inerte em seu “jardim suspenso da Babilônia’’, com pouca consciência sobre a realidade que em tese deseja mudar.

O tom mais dramático que o filme assume com o tempo é bastante tocante, não tem como negar. Desde o monólogo impecável de Luisa Arraes, até o impacto que as falas de Jair Bolsonaro, ipsi litteris em tela, causam: no drama, o filme consegue embrulhar o estômago e causar revolta. No entanto, não é tão potente em provocar reflexão como quando aposta na ironia e no sarcasmo que a comédia permite, para criticar uma esquerda desorganizada e distante da realidade do povo que tanto defende. Transe se torna mais interessante justamente quando traz à tona a ineficácia de certos comportamentos e pensamentos deste grupo no combate ao crescente movimento de extrema-direita no país, questionando seu público com uma pergunta muito simples, mas que está bastante viva na mente de todos que hoje acompanham o segundo turno aflitos: onde nos perdemos?

Esse questionamento irá aparecer diversas vezes durante o longa, à medida que a esperança de vencer as eleições de 2018 dá espaço ao derrotismo. Seja na conversa incrivelmente engraçada entre Johnny Massaro e uma figura “Woodstockiana” e conspiracionista no balcão de um bar, ou na conversa mais séria entre a personagem de Luisa Arraes e uma mulher preta sobre a ausência de mulheres como ela nos protestos do movimento Ele Não, em 2018. Por meio de diálogos bastante expositivos, o filme está sempre questionando seu próprio público sobre os possíveis motivos que levaram à derrota da esquerda, mesmo com um “outro lado” tão nefasto e violento. Seria a falta de proximidade com a igreja evangélica? A falta de diálogo entre as próprias minorias? A falta de compreensão da realidade periférica? O filme não vai trazer essas respostas, apenas reforçar essas perguntas.

O lado negativo, entretanto, além da imensa quantidade de diálogos expositivos que às vezes soam um tanto quanto discursos prontos de redes sociais, é que não fica tão claro se essa ironia como provocação de fato fazia parte da intenção do filme, ou se apenas recaiu como tal pois seus personagens foram retratados de forma tão caricaturada que não houve muito espaço para outras interpretações. Ou seja, a sua maior virtude, ao meu ver, é tão sutil, que pode facilmente se perder em meio à insistência por um tom mais dramático que acaba lhe levando, em muitos momentos, a ser mais do mesmo. Caso confiasse mais à personagem de Luisa essa espécie de Anna Karenina moderna e nos personagens de Johnny Massaro e Ravel Andrade como Belmondos cariocas, como faz em muitos momentos, Transe se destacaria bem mais e se tornaria mais memorável do que foi o seu resultado final. É interessante que a mise en scene do filme até ensaia momentos de Godard por ali, algumas vezes, mas acaba se rendendo ao mais comum e se perdendo no que fica “no meio” disso, adotando um tom mais comercial.

Fato é que, entre as mais variadas formas de documentação da História, a arte é a mais criativa, flexível e inventiva destas e Transe prova isso. É possível usar imagens, entrevistas e documentos da realidade fática para dentro de uma ficção que vai sendo escrita ao mesmo tempo em que é vivida. Isso é algo elogioso, por si só, e que verdadeiramente merece o reconhecimento enquanto um trabalho que, dentre muitos outros que estão sendo produzidos nesse mesmo período, será um documento produzido de uma parte lamentável da história do nosso país, a qual esperamos que nunca mais se repita. Mas que, para isso, precisa acordar desse transe.

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