Crítica: Fando e Lis (1968)
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Crítica: Fando e Lis (1968)

As dificuldades financeiras que Jodorowsky teve para produzir o seu primeiro longa não são transparecidas na experiência transcendental de assistir Fando e Lis (1968). O artista é completo quanto à elaboração do argumento, pois une uma série de elementos simbólicos e místicos de forma a preencher um quadro. A grande questão é que este quadro possui diversas camadas, todas elas em sincronia com um ou vários problemas sociais e profundos dilemas filosóficos.

Jodorowsky é, portanto, um mestre inspirador e o seu trabalho impacta qualquer ser humano que, por mais simples que seja, dedica algumas horas do seu dia à criação artística – mesmo aquelas que os próprios praticantes não dão o devido reconhecimento como tal. A sua arte amarra a burguesia, coleciona mitologias e dialoga a profundidade do conhecimento humano com a penúria. A dificuldade em se fragmentar Jodorowsky é tamanha, pois ele se apresenta e trabalha somente com fragmentos, a união é uma utopia e ele faz questão de repetir isso em seus trabalhos, de diversas formas diferentes.
Fando e Lis (1968) foi moldado a partir de um argumento de Fernando Arrabal – outro mestre do surrealismo e cinema visceral – e fala sobre a mulher como símbolo e homem como um demônio manipulador. A jornada dos dois gêneros aos poucos transformam-os em um só, alimentos da natureza que retarda a vingança, mas nunca a esquece. O pecado primordial, a maçã que fora mastigada vorazmente pela curiosidade e dessa atitude desonrada criou-se a civilização manchada pela sombra inquietante do egoísmo. A curiosidade cria seus filhos; filhos devoram uns aos outros; e os restos da carne são filmados por Jodorowsky.

A cena inicial onde Lis está deitada traz consigo a sensação descrita na introdução. Sua roupa branca, o lençol preto, em outro momento é possível enxergar somente parte do seu rosto e bonecas ao fundo, esses quadros demonstram com exatidão a sua fragilidade perante aos interesses do meio, algo que será ainda mais agravante no decorrer do filme.

O contraste é criado e os personagens passarão a ser inimigos da natureza. Nos créditos iniciais o narrador fala sobre Tar, um lugar aparentemente livre de qualquer castigo e maldade. Fando e Lis enfrentarão uma jornada tortuosa para encontrar o Jardim do Éden, da qual foram expulsos na origem. Irônico é que no caminho Fando faz exatamente o contrário do que busca, e não é assim a maioria dos homens?

– Serei um grande pianista.
– E se eu lhe cortar umas das mãos?
– Então, serei um grande pintor.
– E se eu lhe cortar a outra mão?
– Então, serei um famoso dançarino.
– E se eu lhe cortar as duas pernas?
– Então, serei um grande cantor.
– E se eu lhe cortar a garganta?
– Então, minha pele se transformará num lindo tambor.
– E seu eu destruir o tambor?
– Então, me tornarei uma nuvem

“Tar” possui um valor profundamente religioso, no entanto, se analisarmos a carreira vanguardista no teatro de Jodorowsky e o início pouco ortodoxo no cinema, esse local representa a produção artística distante de qualquer censura. Um ambiente que estima o ser a se dividir e não perde o sono afim de o limitar. O poder faz justamente isso, manipula o ser em formação para seguir um percurso diferente do senso crítico.

Enquanto Fando busca insistentemente “Tar”, ele não consegue enxergar que aquilo que procura existe dentro da própria Lis. A sua fragilidade e inocência, bem como a limitação física que é utilizada por ele como forma de autoritarismo e controle, tudo isso unido às cenas simbólicas onde um piano é queimado e as cordas de um boneco marionete são cortadas, demonstram que “Tar” não existe mais, a humanidade fora há muitos anos abandonada e vive de migalhas de boas intenções. Fando é o fascismo.

O titereiro corta as linhas que o une ao seu fantoche e busca preencher sua ânsia com uma pequena garota. A violação dos direitos humanos, a degradação psicológica e a inerência à posse sintetizadas em um abuso que, logo em seguida, é cortada para mãos quebrando ovos. Vida desmoronada e toda uma esperança que se esvai. O impulso selvagem aqui é o mesmo que acontece em dois momentos distintos: um é onde em uma brincadeira um homem vendado beija um moço enquanto segura o corpo de uma mulher. Sabe-se de onde vem o afeto, mas pouco se importa em para quem vai; o outro é quando um pai acompanha o filho cego e clama por sangue, por fim somente o pai bebe o filho permanece com sede.
Aquele que adianta uma vida perfeita é o primeiro a morrer. A estrada é “aqui” e as consequências do desastre ancestral é intrínseco à existência. “Se Tar não existir, nós podemos inventá-lo”, assim como podemos inventar mundos melhores ou piores e, acima de tudo, resoluções. A certeza da morte deveria nos privar do medo de dar os passos e se perder no tempo, a ciência de que retornaremos à terra deveria nos deixar felizes. Lis devora a rosa; Lis é a rosa; e a rosa é a boneca.

O egoísmo e manipulação, apesar de propagado aos ventos como um mal necessário, deve ser enfrentado com sorriso e ironia, a força conjunta que ataca transvestindo todos os homens em mulher, em “Tar”. Enquanto a pureza existir, a tinta preta há de ser espalhada pelo corpo feminino; mas o piano queimado renasce pois a arte há de sobreviver.

“Que bonito es un entierro. Que bonito es un entierro. Iré a verte al cementerio con una flor y un perro”

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