Crítica: A Jaula - Cinem(ação)
3 Claquetes

Crítica: A Jaula

A Jaula

Sinopse: É só mais um carro de luxo sendo roubado numa rua de São Paulo… ou não. Um ladrão (Chay Suede) entra com facilidade no SUV estacionado numa rua pacata, mas, ao tentar sair, descobre que está preso em uma armadilha, incomunicável, sem água ou comida. Recai somente sobre ele a vingança que um famoso médico (Alexandre Nero) planejou depois de sofrer inúmeros assaltos. Quem passa em volta não percebe o embate que se arma entre o sádico vingador e o ladrão prisioneiro dentro do carro. “A Jaula” é um thriller psicológico que não deixa o público desgrudar da tela. Quem é o vilão e quem é a vítima?
Direção: João Wainer
Roteiro original: Mariano Cohn e Gastón Duprat
Tradução e adaptação: João Candido Zacharias
Elenco: Chay Suede, Alexandre Nero, Mariana Lima.

Premissas como a de A Jaula são instigantes por definição: com eventos que transcorrem quase que inteiramente em um só local, temos o chamado “filme de câmara”. Remake do argentino “4×4”, A Jaula busca transmitir um sentimento de claustrofobia aos moldes de obras como “Quarto do Pânico”, “Enterrado Vivo”, “Por Um Fio” e até mesmo o primeiro “Jogos Mortais”. O enredo – um ladrão (Chay Suede) que é preso dentro de um carro e sofre torturas físicas e psicológicas através dos jogos sádicos promovidos pelo dono do veículo (Alexandre Nero) – aproxima a obra mais aos filmes de Joel Schumacher e James Wan, do que aos de David Fincher e Rodrigo Cortés. 

Sendo o tipo de produção em que as habilidades de interpretação de seu ator principal, que deve sustentar a projeção apenas com a força de sua presença (à parte dos esforços cênicos da direção) o filme dirigido por João Wainer (em seu primeiro longa de ficção) é feliz na escalação de Chay Suede como o protagonista. Diferente de muitos galãs e seus pesares em se entregar completamente a uma desmistificação de suas figuras consideradas belas (a preservação da imagem; o “pode me enfeiar, mas nem tanto, que exista glamour”), o ator se esforça para ceder seu corpo sem medo das experiências degradantes pelas quais o personagem passa. Ao mesmo tempo, Wainer é consciente de que, além de uma atuação competente, é necessário que esse protagonista, que será majoritariamente nossa única companhia durante a projeção, possua uma presença magnética natural. Em A Jaula, temos um arranjo em que todos ganham: Suede possui uma vitrine para expor suas habilidades como ator (e a responsabilidade que vem com ela), e o filme conta com um ator famoso e dedicado, pronto para mostrar que é mais que um rostinho bonito.

O corpo em cena é importante não só por essa ideia da figura magnética, projetada para que não tiremos os olhos dela, mas também por ser, basicamente, uma espécie de cobaia, alvo dos instrumentos de tortura que o filme impõe sobre ela. A degradação física demarca a jornada. Perdem-se peças do figurino e ferimentos aparecem gradualmente porque no filme essa mudança se sente mesmo na corrupção do belo. É uma abordagem eficaz na construção de urgência e tensão, que não deixa de ir na contramão de alguns filmes de câmara que associam o ritmo da obra com o mundo de fora, e, portanto, adicionam flashbacks na tentativas de quebrar a narrativa, na procura de fugir do monótono. O filme de Wainer renega esse recurso, se dedicando às tentativas de escapar de Chay, e o jogo de gato e rato do protagonista com seu algoz, o médico vivido pelo sempre carismático Alexandre Nero, presente na maior parte do filme apenas com sua voz, nas chamadas telefônicas que realiza através de um dispositivo de seu SUV.

Ao remover os flashbacks que revelariam um pouco sobre a vida do assaltante antes do evento que catapulta o conflito do filme, talvez na tentativa de uma jornada de mudança não só física, mas também moral, A Jaula revela esse aspecto da vida de seu protagonista em pequenas informações cedidas desde elementos de cena, como os cadernos de colorir e crayons coloridos presentes na mochila do sujeito e a ligação que ele realiza para o seu filho mais novo, e nada mais. Se a abordagem se revela eficaz por revelar informações de forma econômica num primeiro momento, renegando a procura de desvendar quem o personagem de Suede foi, ela acaba se enfraquecendo diante das ambições temáticas da obra. Nessa figura em branco, temos apenas o avatar de um ladrão. No vilão de Nero, no entanto, temos as motivações e o passado bem delineados, a definição do médico com doença terminal (o que curiosamente o aproxima ainda mais do Jigsaw de Jogos Mortais) como o estereótipo do “cidadão de bem”. 

Assim, temos uma trama que vislumbra o comentário social, incluindo a presença de uma apresentadora de TV num programa criminal sensacionalista, com os jargões, os “vagabundo”, os “marginal” proferidos num tom satírico. Quando o filme abandona os esforços angustiantes do protagonista para se manter vivo e deixa o “mundo de fora” finalmente entrar na narrativa, com a presença física do médico, acontece uma bizarra inversão de papéis, em que é o execrável personagem de Nero que possui um arco de personagem definido, onde ele possui uma possível jornada de redenção no circo final que se apresenta. No clímax que retrata uma escalação rápida da chegada de equipes jornalísticas, multidão enfurecida, onde até a policial impacientemente sussurra seus reais desejos para o médico vivido por Nero, temos um filme que opta por uma conclusão em pleno estado de encenação teatral e apressada.

Ao sair do eficaz e econômico thriller de confinamento para um ambicioso microcosmo da sociedade quebrada, querendo abordar apressadamente temas complexos em busca de uma resolução mais grandiloquente e satisfatória de uma catarse de teor expurgatorio como obra de cinema, o filme se enfraquece, ainda que seja sempre um prazer acompanhar o carisma de Alexandre Nero. A objetificação do corpo de Chay Suede, possível mártir representante de uma classe social retratada aqui, possui o gosto amargo do protagonista que tem seu corpo objetificado novamente ao final, mas desta vez como uma mera peça em prol da jornada de seu vilão, que rouba o filme para si.

  • Nota
3

Deixe seu comentário