Cine PE 2019 | Espero Tua (Re)Volta
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Cine PE 2019 | Espero Tua (Re)Volta

Após a introdução irreverente em off de Lucas “Koka” Penteado, uma voz feminina invade a narrativa e o interrompe: “mas peraí, tem um negócio que tá me incomodando muito nessa situação toda. Esse documentário aconteceu numa época em que nós elegemos a primeira mulher Presidenta da República, onde as principais lideranças dos movimentos estudantis eram mulheres, onde a tag das ocupações era “lute como uma menina”, e é um homem que vai narrar essa história? isso tá muito errado” , diz Nayara Souza, líder estudantil e presidenta da UEE (União Estadual dos Estudantes) São Paulo, que se apossa da narrativa, apenas para ser também interrompida pela voz de Marcela Jesus, também ativista, participante importante da Mobilização estudantil secundarista no Brasil em 2015 – contra a reorganização do ensino público – e negra: “Eu acho muito importante uma mulher narrar sobre o movimento estudantil, mas mulher de entidade? ainda por cima branca? Eu sou autonomista e quem vai contar essa história sou eu”.

Ocorridos entre uma edição frenética – videoclíptica, até -, tais momentos ditam prontamente o tom que a diretora Eliza Capai adotará em seu documentário“Espero Tua (Re)Volta”, destaque em festivais (recebeu em Berlim os prêmios da Anistia Internacional (AI) e da Paz concedido pela Fundação Heinrich Böll) e vencedor de Melhor Longa-Metragem da 23ª edição do Cine PE. É um tom que reflete os movimentos jovens e como encaram o atual cenário político e social Brasileiro, onde, antes de falar sobre algo, é preciso de recortes sociais, raciais e consciência de classe.

O que temos aqui, então, é uma disputa de narrativa entre esses três jovens, que narram o documentário com base em suas vivências, com seus contextos próprios e seus respectivos papeis nos movimentos e ocupações estudantis que ocorreram em 2015, mas, para entender tais estopins, viajando para trás e para frente no tempo, desde manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus (“não é só por 30 centavos!”), passando pelo Impeachment, até chegar aos meses antes da posse de Jair Bolsonaro, traçando, assim, uma visão ampla e intrigante sobre tais acontecimentos.

A visão intriga não apenas pelas revoltantes situações presentes na tela, mas sim pela forma em que é contada. Ao invés de um didatismo claro e completo, o que temos mais é uma narrativa do ponto de vista jovem, com linguagem jovem e protagonistas jovens. Gírias, expressões da internet e até mesmo tolices de uma visão romântica (necessária) juvenil se intercalam e caminham de forma não linear e irreverente, apresentando uma falta de foco que reflete a própria cabeça dos jovens. Nenhuma ponto é objetivo e sempre apresenta ramificações, que são interessantes justamente pela necessidade do questionamentos de motivos, dos “porquês” inerentes a própria juventude. Assim, através dessa falta de foco narrativo, entramos em conversas sobre racismo, feminismo (mais importante, feminismo negro) e preconceito.

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“Sou a primeira da minha família a terminar o ensino médio. Fui criada no centro de São Paulo numa condição em que muitas vezes tínhamos que escolher entre comer ou morar, e como comer é mais importante, muitas vezes fomos despejados.” Diz a jovem Marcela Jesus, intercalada com emocionantes imagens de arquivo onde aparece, mais nova, nos protestos de 2013/15. “Eu participei, sem entender muito o que acontecia.”

Outro aspecto notável de“Espero Tua (Re)Volta” é como parece, também, querer compreender a cultura jovem, explicitando uma diferença geracional que é a todo tempo sentida mas poucas vezes dialogada. NA coletiva de sábado (3), no Hotel Nobile Suites Executive, em Recife, Eliza Capai fala um pouco sobre esse choque de gerações, que ocorreu quando ela entrou na ocupação da Alesp, em 2016:

“Eu me senti uma tia muito velha lá dentro (risos), porque eu olhava aquelas crianças e falava “essa menina de shortinho, com a guarda municipal aqui, coitada. eu fiquei com esse sentimento, e quando fui perguntar pra ela sobre e ela falou ” não querida, meu corpo, minhas regras”, eu fui entendendo como essa geração leva pros corpos a luta que na minha geração eram slogans e coisas que a gente fala, e coisas que a gente ainda tá entendendo.

Essa “revolução corporal” é citada pela própria Nayara (uma das protagonistas), bissexual, que explicita, em sua introdução, como “rolam pegações” e uma certa “curtição” por parte dos jovens manifestantes. Porque para ela, não é só uma revolução política. O descoberta do jovem de sua voz política, que vem com a percepção de que é possível se organizar e lutar por seus direitos vem num período de descoberta e questionamento corporal, então é apenas lógico que a revolução venha também nesse sentido, como ela diz no filme.

A escolha por manter esse trecho no filme é corajosa, em tempos onde a direita e apoiadores do “mito” taxam qualquer protesto jovem como “arruaceiros e vagabundos”, evidenciando novamente a diferença geracional que ocorre. Se mesmo no próprio movimento existam lugares pata oposições e autoavaliação (revoluções corporais à parte, protesto não é “rolê”), o simples fato de tal declaração ser mantida, tola, juvenil ou não, merece aplausos justamente por ser um retrato sem julgamentos de algo particular à juventude retratada, que se apossa deste documentário. “Eu saí com a certeza de que eu tinha que entender que geração era aquela”, afirma Capai.

Assim, o maior triunfo de “Espero Tua (Re)Volta” – vencedor de Melhor Longa-Metragem no Cine PE 2019 – e o que mais o difere de outros documentários do tipo acaba sendo sua hábil montagem (“ao todo, tinha ainda 150, 200 horas de material”, pontua a diretora), com conteúdo desconcertante, mas com uma forma que, ao fornecer uma examinação de eventos que mudaram – e marcaram – o Brasil que vemos hoje “de dentro”, do ponto de vista de jovens com paixão voraz para mudar seu país, acaba transformando esta obra também num retrato de uma geração.

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