Hannah Gadsby, a comédia e a tensão
Pode parecer só mais um espetáculo de comédia stand-up, mas Hannah Gadsby: Nanette toma proporções muito maiores, justamente pelo motivo que a comediante australiana coloca no show. Pode ser que esse texto contenha alguns SPOILERS, portanto, se quiser assistir primeiro, não prossiga. Pode voltar aqui depois! 😉
Hannah é uma australiana de 40 anos, natural da Tasmânia, sagaz, rápida e lésbica. Não só lésbica, mas o que é considerado “lésbica masculina”. Ao longo do seu stand-up, ela aponta diversas características do que é uma boa comédia stand-up, sendo a principal delas o humor autodepreciativo. E é justamente ai que Hannah começa a mudar tudo!
Assim que asssiti ao programa da Netflix, eu sabia que tinha que falar sobre ele. Tanto que assisti duas vezes no mesmo dia. A mensagem que está ali é importante, tanto para o “meu povo” quanto para resgatar a humanidade das pessoas. Não me importava que o show não tivesse “conteúdo lésbico suficiente”, o que é claramente uma ironia.
O especial de comédia chama-se Nanette e nos leva a pensar que essa será a personagem da noite, mas Nanette nada mais é do que uma mulher interessante que Hannah conheceu, achou que daria bom conteúdo e… bem, não deu certo! Para dar o tom do seu especial, a comediante fala então da sua sexualidade e suas experiências no mundo quando não se é uma pessoa “normal”. Para falar de sua sexualidade, Gadsby conta em como foi crescer lésbica na Tasmânia e de como era torturante crescer em um lugar, no “Cinturão da Bíblia”, onde a homossecualidade era considerada crime até 1997.
1997, sim você leu certo! A homossexualidade deixou de ser crime na Tasmânia há apenas 21 anos, considerando que a OMS só deixou de considerar a homossexualidade uma doença em 1990, talvez a pequena ilha não estivesse tão atrasada em questão de tempo. Mas olhando para a questão da humanidade, até a própria OMS estava atrasada e, na condição humana, seguimos muito atrasados até hoje.
Voltando ao Hannah Gadsby: Nanette, é preciso assistir com um olhar de carinho e empatia. Hannah conta de sua trajetória de forma leve, para deixá-la mais palatável, mas é claro nas histórias que ela conta o que a comunidade LGBTQI+ pode sofrer. E sofre. Logo no começo, após a primeira leva de piadas, a comediante já deixa claro qual é a finalidade daquele especial: abandonar a comédia.
Para entender um pouco porquê da sua decisão, Hannah explica como é feita uma piada e o que um espetáculo de stand-up precisa para funcionar bem: Tensão e Alívio Cômico. A comediante vai criando a tensão ao contar uma história, como quando fala que quase apanhou em um ponto de ônibus por estar conversando com uma garota e o namorado dela achar que ela fosse um homem, e dá à platéia o alívio cômico, o famoso punchline. Mas o problema com as piadas, como coloca Hannah, é que elas são formadas por um início e um meio, elas não tem um fim, não contam a história toda. E por muito tempo ela mesma se aliviou da forma que contava sua história, sem o final.
Mas a história de Hannah merece ser ouvida. Merece ser ouvida justamente por que pode mostrar a outras pessoas LGBTQI+ que elas não estão sozinhas, merece ser ouvida por que Hannah merece um lugar no mundo tanto quanto qualquer outra pessoa, a vida dela importa tanto quanto a de qualquer outro grande artista. E é por isso que ela deve abandonar a comédia. Não tem como não sentir o impacto do que Hannah coloca, de seu lugar e de sua raiva. Suas palavras são acertivas na ferida e, prepare-se, elas vão doer….
Hannah Gadsby: Nanette é uma oportunidade de recuperar a humanidade perdida, principalmente para os homens héteros brancos, como coloca a comediante. É uma oportunidade de finalmente se ter empatia por uma situação que você jamais viverá.
Que tal?