Em defesa de The Crown e seus personagens
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Em defesa de The Crown e seus personagens – mas não da monarquia!

A série The Crown terminou na sexta temporada, lançada recentemente em duas partes – mostrando que a Netflix já percebeu que fica enfraquecida quando lança séries inteiras de uma só vez.

Diferentemente de muitos, eu gostei de como a série acabou, e de como os acontecimentos foram retratados. Isso obviamente não significa que a série seja perfeita e muito menos que eu apoie a monarquia.

Desde os primeiros episódios, em que Claire Foy interpreta uma jovem Rainha Elizabeth, The Crown se destaca pela produção grandiosa e por trabalhos técnicos primorosos que vão desde a direção de arte e figurino repletos de sofisticação e grandiosidade, até a solenidade e circunspecção da trilha sonora e das atuações. Ao longo de toda a série, quatro episódios foram montados pelo editor brasileiro Paulo Pandolpho, e 27 episódios tiveram direção de fotografia do também brasileiro Adriano Goldman.

Além das qualidades técnicas de encher os olhos, o que me faz gostar de The Crown é a maneira com que a série discute a função da monarquia (cofocofnenhumacofcof), os dilemas dos personagens (principalmente da rainha) e as medidas que vem sendo tomadas para manter o status quo de uma família real como representante de uma nação.

São personagens, estúpido!

Quero me ater a esta última temporada. Nela, o ator Luther Ford dá vida ao príncipe Harry. Diferente de tantos atores muito parecidos com os personagens da vida real, este não é muito similar à pessoa retratada. O ator tem seus momentos, mas está longe de ter o mesmo destaque de Ed McVey, o príncipe William. É claro: ele não tinha grande importância no momento e, como personagem, é apenas um coadjuvante.

Além da própria rainha, os “protagonistas” desta última temporada são, basicamente, a princesa Diana e os príncipes Charles e William. Ainda que The Crown tenha o mérito de passear por diversos personagens para retratar suas situações, eles são explorados apenas para contar as histórias que fazem sentido para o período histórico em questão, sem uma constância na trama.

Mas não são pessoas. Não estamos vendo o príncipe William de fato, nem a rainha Elizabeth de fato. São personagens que servem a uma história que retrata um ponto de vista. O ponto de vista do criador Peter Morgan é, ao que me parece, um misto de questionamento positivo acerca da monarquia com a valorização dos sacrifícios de Elizabeth para com o seu “povo”. É um ponto de vista questionável, claro. Ao longo da série, os comentários políticos sobre o colonialismo do Reino Unido são poucos, assim como as observações sobre a distância entre a Família Real e seus súditos pagadores de impostos.

Acredito que The Crown se destaque neste final de série por contar histórias mais recentes. Estamos vendo uma interpretação de histórias reais que ocorreram há cerca de 20 anos, enquanto estamos mais acostumados a ver cinebiografias e retratos de algumas histórias reais de mais décadas no passado, quando não séculos. Mas a relação entre ficção e realidade é a mesma: há mudanças feitas em relação à realidade e há enfoques em características ressaltadas apenas para a história que está sendo contada, com seu viés e suas especificidades.

A influência da morte da rainha

Fica bem claro que The Crown mudou seu fim a partir da morte da rainha Elizabeth. A forma como a série trata de seu reinado funciona como um “fechamento” para a monarca mais longeva da história. Isso só reforça como o audiovisual/cinema tem a importância de evocar significados do período de produção da obra.

No fim das contas, The Crown parece valorizar o esforço da Família Real em manter essa chamada “tradição imutável” como um pilar de sustentação de um país – ou melhor, diversos países, sejam pertencentes ao Reino Unido ou à Commonwealth. E, segundo a visão da série, essa sustentação viria às custas do sacrifício de uma família, que deve ater-se a regras de vivência que fogem do que seria normal entre pessoas comuns (e toda vez que eles sofrem por isso em meio a tanto luxo, não tem como não pensar no meme que diz: ‘ah, tadinha, que barra’).

A descrição que eu faço pode parecer um tanto negativa, mas eu vejo como positiva. Gosto de ver a leitura que a série faz dos personagens, e confesso que tenho um certo apreço em “passear” por tantos ambientes luxuosos.

No fim das contas, apesar de The Crown pintar a realeza britânica com cores exuberantes e sentimentos agridoces, tudo o que eu posso concluir ao assisti-la é o quanto a monarquia não faz o menor sentido como forma de governo, ainda mais nos tempos de hoje.

Ao mesmo tempo em que The Crown nos mostra histórias verdadeiras, ainda que modificadas em função da dramatização, ela nos passa a sensação de acompanhar um conto de fadas surreal, desconectado da realidade.

Talvez esta seja exatamente a definição mais adequada a se fazer da realeza britânica.

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