Crítica: Bloco de curtas “Experimentações de Gênero” – Novo Cine PE 2020
Desde de sua “retomada”, em 2018, a curadoria do Cine PE manteve uma programação de filmes e curtas que dialogam entre si, produções que incitavam a reflexão sobre o cenário atual do país em diversas formas, com diversos recortes, em diversos cenários. Neste ano, os curadores Edu Fernandes e Nayara Reynaud sugeriram uma separação de curtas nacionais e pernambucanos por blocos temáticos, até mesmo para ajudar a guiar o público nas exibições dos curtas entre os dias 14 e 18/12, das 20h às 21h30 na TV Pernambuco, uma possibilidade de alcance que não existiria caso estivéssemos numa edição convencional do festival.
No bloco “Experimentações de Gênero” vemos curtas que procuram olhar para um cinema, como o título do bloco diz, de gênero (terror, ficção científica, ação), um cinema de loucuras, de pirações, que deu as caras cada vez mais nesses últimos anos justamente por um olhar da curadoria ao que é considerado “vulgar”, para um cinema que tem pouca vez fora dos festivais desse nicho justamente pela marginalização dos mesmos perante aos “filmes de arte e discussões políticas”. Se as curadorias desses festivais têm cada vez mais aprendido a reconhecer que o cinema de gênero é eficaz em abordar mal-estares contemporâneos por excelência, eles podem até ser mais acessíveis, e, se já não rasguei elogios o suficiente a tais escolhas nos últimos anos do festival (Cara de Rato, Cine PE 2018; Guará, Cine PE 2019), vale aplaudir mais uma vez o espaço dado a obras do tipo.
O bloco deste ano é ligado pelas assombrações, de aparelhos eletrônicos, de desejos e culpas, de navios conscientes, do mundo ao redor e, porque não, do próprio cinema, essa coisa louca que pode possuir, corromper, assimilar e transformar.
Celular (PE) – Ficção – 9’
Sinopse: Celulares se tornaram uma extensão do ser humano. Guardam recordações, compromissos e segredos. Há quem diga que a troca de energias com esse objeto vai além da vida material. Direção: André Pinto e Henrique Spencer Roteiro: André Pinto e Henrique Spencer Elenco: Larissa dos Anjos, George Andrade, Daniel Cavalcanti, Marcilene Costa e Dyego Neves
“Celular” passa por um processo de “descobrimento além das primeiras impressões” que vai de encontro com o que foi mencionado na introdução deste texto. Por trás da escolha do “Found Footage”, algo que se tornou – até mesmo pela utilização a exaustão – apenas mais um artifício e é subjugado até mesmo dentro do gênero do terror por ser sinônimo de “baixo orçamento e sustos fáceis”, há uma discussão muito interessante sobre a linguagem, sobre os pontos de vistas do observador e do observado, do que se vê dentro e fora da tela, sobre tempo e o próprio espaço, e como o fantasma da própria linguagem pode ser muito mais poderoso e incontrolável do que espectros inseridos na farsa da narrativa.
O Sentinela da Frágil Fortaleza (CE) – Documentário – 9’
Sinopse: Um gigante dos mares descansa nas verdes águas da Praia de Iracema. Encalhado, despedaçado, corroído, o velho navio esfarela-se lentamente aos pés da cidade observando a rotina à sua volta. Mara Hope trava uma conversa solitária confessando seu amores, revoltas e desilusões por Fortaleza. Direção: Alexandre Vale Roteiro: Alexandre Vale Elenco: Pantico Rocha – Voz do Mara Hope
“O Sentinela da Frágil Fortaleza” é dessas obras que justificam o título do bloco. É descrita pelo diretor Alexandre Vale como um filme de difícil categorização, como um “doc poesia”. A alcunha do “experimento de gênero” vem aqui pela escolha da própria forma, um documentário sobre Mara Hope, petroleiro que encalhou em Fortaleza, em 1985, e desde então se tornou atração turística, mas que atribui consciência ao navio que vem na narração em off de Pantico Rocha. Esse seria o único elemento sobrenatural da obra, e pela ótica de seu diretor, o Mara Hope se torna um navio fantasma. Apenas por isso este curta já se torna interessante, e se essa narrativa poética, da prosa intercalada com imagens da cidade acaba até o inserindo num tipo de documentário que se tornou, atualmente, quase “memetizável” (Petra Costa parece carregar, com seu “Democracia em Vertigem”, a responsabilidade por isso), como se o devaneio alegórico e romântico perdesse o sentido por trás das palavras bonitas, “O Sentinela da Frágil Fortaleza” consegue transcender isso. De repente o curta é tomado por poderosos riffs de guitarra da trilha composta também por Pantico Rocha, que transgridem o próprio tom de aparente serenidade estabelecido pelo curta e inspiram, desconcertam, enquanto o espírito desse titã caído viaja e revisita a cidade, passando pelos rostos marcados de seus moradores. Somos colocados num transe, onde a junção do texto, música e imagens afloram os sentidos. A maior surpresa desse bloco.
A casa e o Medo (SP) – Animação – 4’
Sinopse: Quando um garoto é deixado sozinho, sua casa deve protegê-lo de uma sombra misteriosa que o persegue Direção: Eduardo Aliberti, Henrique Truffi e Valentina Salvestrini Roteiro: Eduardo Aliberti
“A gente vê bastante filmes de stop-motion com várias técnicas e normalmente este tipo de filme te ganha pela estética e não pela ideia”, diz Valentina Salvestrini, uma das diretoras de “A Casa e o Medo” sobre o seu curta, em debate realizado no canal do Youtube do Cine PE 2020. Acompanhamos um garoto que, sozinho em casa, é assombrado pelo medo do desconhecido, do tempo, do mundo de fora. Usando a sombra como metáfora para tais medos, temos um curta econômico na forma como concatena suas ideias, mas que gera um exercício de estilo interessante.
O Homem das Gavetas (SP) – Animação – 8’56”
Sinopse: Uma metáfora para os pecados capitais, através de um homem cujo corpo é feito de gavetas. Certo dia, uma de suas gavetas abre e ele começa uma busca para tentar preencher o vazio em sua existência. Animação baseada nas ideais surrealistas de Salvador Dali, em que o cenário surrealista combina com os pecados capitais. O curta-metragem tem aproximadamente 10 minutos e utiliza a técnica de animação stop motion. Direção: Duda Rodrigues Roteiro: Duda Rodrigues
O preenchimento do vazio no ser – não importa o custo – é o que move “O Homem das Gavetas”, de Duda Rodrigues. Utilizando as gravuras de Salvador Dalí que interpretam Dante Alighieri e sua Divina Comédia como referência para compor o conceito por trás de seu protagonista, uma figura humanoide composta por gavetas em seu corpo, temos uma recriação dos sete pecados capitais nas incursões deste ser em preencher o próprio vazio. A construção do boneco e do mundo ao seu redor é de um virtuosismo técnico que impressiona, e o silêncio da condução de sua jornada enriquecedor. Sensível.
Vigia – Um Olhar Para a Morte (BA) – Ficção – 22’
Sinopse: Salvador trabalha como segurança noturno em um banco e busca nos filmes de ação uma forma de superar sua rotina monótona, enquanto as fronteiras entre realidade e fantasia se tornam cada vez mais indefinidas. Direção: Victor Marinho Roteiro: Victor Marinho Elenco: Átila Leal, Jade Ianuzzi, Guiga Stadler, Maria Rezende, Thiago Lucas e Jairo Cunha
“Vigia – Um Olhar Para a Morte” é a obra mais satisfatória do bloco não só pelas propostas do mesmo – sua linguagem é aquela que procura a própria exploração dos gêneros, e parece constantemente querer se encontrar em meio aos experimentos feitos aqui -, mas também às ideias que trabalha. Se parece de início – até mesmo pela questão da vídeo locadora e dos pôsteres como o do próprio Pulp Fiction – uma homenagem inofensiva à Tarantino, justamente um dos cineastas com estilo dos mais reproduzidos até mesmo por um “cinema de estudante”, o que a reduziria à um mero exercício nostálgico de estilo sobre substância, logo a história de Salvador – um segurança noturno em um banco que busca nos filmes de ação uma forma de superar sua rotina entediante – se torna um conto sobre a busca pelo afeto e conexão, da única forma que a visão limitada de seu protagonista permite: nesse cinema de ação brucutu dos anos 90. A visão simplista e limitada de seu protagonista se confunde com a dos protagonistas destes filmes, os machões movidos a testosterona com conduta e moral estreitas, os Charles Bronsons, os Johns Maclanes. Assim, temos um comentário sobre o masculino, sobre esse viril movido à músculos e homoeroticidade conforme Salvador se afunda cada vez mais em suas ilusões e procuras pela fuga. “Vigia” se torna, então, quase um Taxi Driver baiano sobre o ilusório, sobre o cinema de vulgaridades e baixarias ao qual explora, sobre cultura pop e novamente sobre as assombrações que o cinema pode proporcionar e distorcer para o mundo perturbado de seu protagonista, que recorre, como tantos, à sétima arte em busca de sentido.