Crítica: Apenas Coisas Boas - Olhar de Cinema 2025 - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: Apenas Coisas Boas – Olhar de Cinema 2025

Apenas Coisas Boas
Direção: Daniel Nolasco 
Roteiro: Daniel Nolasco
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2025 (Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba)
Elenco: Lucas Drummond, Fernando Libonati, Liev Carlos, Renata Carvalho, Igor Leoni, Guilherme Théo, Norval Berbari, Lizz Miranda.
Sinopse: A partir do encontro marcante entre dois homens no interior de Goiás, na década de 1980, o diretor Daniel Nolasco tece uma narrativa que se desdobra por tempos e, por que não, dimensões múltiplas, a partir da força pulsante do desejo e do amor, mas também da presença sufocante da repressão e do silenciamento.

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Apenas Coisas Boas: melodrama romântico gay rural de Daniel Nolasco se transforma em um mistério cuja resposta não se encontra necessariamente nos acontecimentos da sua trama

Bão? 

Bão…

O primeiro diálogo em muito tempo de um silêncio pautado pelo som de natureza que acontece em Apenas coisas boas, de Daniel Nolasco, é só mais uma manifestação da precisão formal do diretor em um filme que vai acontecendo com calma diante dos nossos olhos. Um melodrama romântico rural idílico que se torna algo mais amargo. Do campo para a cidade. Em uma narrativa que nem sempre está se manifestando muito em termos de enredo e história.

Existe a trama. Inclusive complicada até certo ponto. Uma tentativa de investigação. Um crime e uma vingança. Mas as coisas são mais sobre o personagem. Sobre este amargor que cresce com o tempo. A gente não sabe bem por que ou o que. Assistindo meio de fora. Tão perdidos no mistério das coisas quanto a personagem de Renata Carvalho. Uma empregada que encontra evidências de algo que não sabe o que pela casa do patrão rico. 

Mas o filme é sobre mais que isso também. Operando no campo do simbólico, do signo, do referencial – tipo quando franzimos os olhos e enxergamos só a silhueta de algo  – percebemos muito do que existe de mais encantador. Descascando o filme a gente revela esse principal. O fetiche. O cowboy e o motoqueiro. Símbolos de uma masculinidade normativa. Que a gente sempre  viu em cinema, mas também que se manifesta ao redor disso. Nas propagandas de cigarro da parede. Na ideia geral do que é esperado de um homem. A brutalidade. 

Mas ainda assim, o personagem abarca todos esses lados. O homem ideal. Forte e corajoso. Que confronta o pai. Protege sua casa, seus animais e quem ele ama. Ao menos antes dele se acovardar. Antes dele se tornar o que ele se torna. Acastelado na sua mansão de mobiliário caro e de um bom gosto urbano. Frio. Em uma quebra que vem a partir de uma bela transição. No espelho da água de um rio calmo, quase plácido. Mergulhando e emergindo dali a trinta anos.

Quando Fernando Libonati assume o lugar de Lucas Drummond e nos tira do paraíso de Catalão e nos carrega para o purgatório de Goiânia. Que é também quando o cinza substitui o verde. Quando a lagoa artificial do parque substitui o rio. Quando os móveis desenhados por grandes arquitetos, o piso de taco, os copos de cristal tomam o espaço do fogão a lenha, da caneca esmaltada. Da colcha de retalhos hexagonais. 

Acostumados com a ideia de que o tempo, assim como esse rio, só flui para um lado, muita gente fica pensando no como o alardeado melodrama romântico rural perde seus encantos depois dessa elipse “invisível” que nem é uma elipse e remete a Um estranho no lago, de Alain Guiraudie. Parece, superficialmente, que o filme perde seus encantos depois daquele momento. Se enclausura. Perde o infinito do horizonte e das possibilidades. A questão é. O filme perde tudo isso mesmo? Ou é o personagem? E o que ele perde realmente? 

É fácil ignorar porque passa rápido, mas o plano logo no início de Antônio de costas olhando pela janela de sua mansão para a chuva que obscura o horizonte é a chave. É o que denota pela gramática cinematográfica mais básica o fato de que o que assistimos não é necessariamente o real. Mas a memória poluída. O mundo idílico interiorano oitentista ou noventista. De cores fortes da fotografia de Larry Machado. Do silêncio minucioso de sons naturais. De pôsteres de cigarro que parecem quase encenações eróticas de homens fortes e musculosos. Da cena rápida dos homens recém casados e felizes que passam de carro arrastando latas amarradas pela rodovia.

Não é como se o filme estivesse realmente investido num processo tradicional de suspense quando ele adota o mistério na segunda parte. É tudo como um exercício consciente de que ele não nos trará respostas. Porque o que importa é o homem. O que ele fez. Como ele enxerga o que fez. 

E depois disso: o que ele pretende no processo de deixar as coisas para trás. Num desenrolar de lembranças infectadas por sentimentos,assombradas por mensagens de voz do homem amado. 

Não faz diferença, afinal, o que será de Antônio. De sua casa. De sua vida. De seu cachorro e seus empregados e amantes. Importa o que foi ou o que ele acha que foi. O quadro de arte moderna da cozinha maravilhosa substituído pelo retrato imenso de uma felicidade que ele tenta reencontrar. A linha vermelha que ele amarra em seu pulso e no pulso de Marcelo. Como o fio de Ariadne que ajuda Teseu a encontrar a saída do labirinto. 

Filme de cinéfilo. De um gosto pela filmagem. Formalmente consciente de um referencial visual clássico e por vezes quase maneirista. Com o paisagismo do faroeste. O silêncio da sedução. A investigação gira no próprio eixo. O crime presenciado a partir de um dolly zoom vertiginoso à lá Um corpo que cai.  

A grande reviravolta aqui não é um acontecimento ou uma descoberta específica da trama. Mas uma percepção de que não é sobre esta desilusão que o filme fala e sim sobre a ilusão de um passado dourado e fetichizado. Uma vida lembrada apenas a partir de suas coisas boas.

Nota: 4 /5

Texto escrito por:

Vincent Sesering

instagram.com/coqkuleshov

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