Crítica (2): Pecadores
Pecadores – Ficha Técnica
Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2025.
Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Saul Williams, Andrene Ward-Hammond, Jack O’Connell, Tenaj L. Jackson, David Maldonado, Aadyn Encalarde, Helena Hu, Yao, Delroy Lindo.
Sinopse: Dispostos a deixar suas vidas conturbadas para trás, irmãos gêmeos retornam à sua cidade natal para recomeçar suas vidas do zero, quando descobrem que um mal ainda maior está à espera deles para recebê-los de volta.
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Só o blues salva.
Uma das principais fontes de quase todos os ritmos americanos, o blues nasceu nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos enquanto símbolo de resistência, identidade e emancipação, no período posterior à Guerra da Secessão, durante o qual, mesmo após o fim do regime de escravidão, a comunidade negra continuava a ser explorada.
As correntes que outrora roubavam sua liberdade, àquela altura migraram para as normas que, na prática, se estabeleciam com a função principal de proibir pessoas pretas de ocuparem o espaço de cidadãos e de sonharem com qualquer vida que fosse mais que a condição subumana que lhes foi designada desde quando o primeiro escravo desembarcou na América.
O novo filme de Ryan Coogler, cuja filmografia tem títulos de expressiva popularidade com “Pantera Negra” e “Creed”, não abandona os temas de grande relevância sociopolítica sobre a comunidade afro-americana, ao contrário, parece aprofundar ainda mais o estudo dessa sociedade tão profundamente segregada, agora a partir das possibilidades criativas do cinema de horror e das batidas do blues.
Ambientado durante o início do século XX, Pecadores se desenvolve através de um único evento: a inauguração de um juke joint, como se chamavam os bares de blues, em uma pequena cidade do Mississipi. Naquela noite de 16 de outubro, os irmãos gêmeos e — malandros — interpretados por Michael B. Jordan, “Fumaça” e “Fuligem”, estão se preparando para proporcionar àquela comunidade uma noite que nunca viram.
No espaço de um dia e uma noite, somos introduzidos pouco a pouco aos personagens que irão tornar o plano possível e, eventualmente, formar o núcleo central da ação — bastante cativante, diga-se de passagem. Temos a ex-mulher feiticeira e ainda apaixonada, um casal de chineses comerciantes, o bluesman sempre à procura de mais uma bebida, mas não menos sábio, uma única mulher branca que é considerada “da família” e um jovem músico com apenas sonhos no bolso. Ou melhor, no violão.
No início, todos os acontecimentos são perfeitamente mundanos. Ainda que eventos estranhos aconteçam, todos parecem passíveis de uma explicação lógico-realista. Entretanto, não demora muito para que a lenda que introduz a obra, sobre a relação mitológica do blues com a religiosidade e ancestralidade, passe a fazer sentido para nós. É o que acontece quando Coogler decide embarcar de vez nos subgêneros escolhidos e transcender, assim, os limites do tempo e do espaço ao colocar passado, presente e futuro juntos no mesmo galpão para confraternizar.
Ao som do blues de uma trilha sonora original primorosa, a cena é construída a partir de uma câmera que circula em 360º no ambiente, com a decupagem variando em close-ups, planos abertos e planos-detalhes, os quais, juntos, perseguem uma progressão perfeita rumo ao fim das barreiras físicas que limitam aquele grupo. É o clímax daquela sequência, a queima das paredes, o fogo nas limitações espaciais e espirituais — torna-se uma questão metafísica, milenar e mágica. Assim é feito o convite que o sobrenatural esperava (e nós também) para, finalmente, pintar de sangue e suor essa obra.
No cinema de horror, mais especificamente no cinema de horror negro, o sobrenatural costuma ser uma alegoria para criticar violências raciais e suas inúmeras formas. Posto que o terror político (um neologismo por si só) que evidencia o racismo estrutural e suas manifestações não nasceu com Jordan Peele, como muitos adeptos ao “pós-terror” pensam, tampouco Coogler, é de se esperar que Pecadores propusesse algo nesse sentido.
Aqui, o vampirismo é uma representação da usurpação da identidade preta (indígena e asiática, também), o roubo da memória coletiva dessa comunidade e sua tentativa de apagamento. Tal proposição, por sinal, não é nada sutil, a narrativa sugere arquétipos aos personagens do núcleo central com clara finalidade de discutir temáticas caras ao filme.
A referência a Jim Crow, por exemplo, representado na figura do diabo, é um desses comentários e se refere ao conjunto de leis de mesmo nome que instituíram a segregação racial nos Estados Unidos durante aquele período histórico.
A mulher branca, Mary, é aquela que traz a “praga” para dentro da comunidade. A feiticeira, Annie, representa a ancestralidade e é responsável por proteger o herói, o único capaz de dizimar meia dúzia de integrantes da Ku Klux Klan — bela cena de ação — para, por fim, o jovem Sammie, representante do futuro daquela comunidade, perseguir o seu sonho longe das plantações de algodão e dos reducionismos da vida exploratória do campo. Ele é salvo pelo blues — e tudo que vem com ele.
Por fim, eu descreveria o filme como um vasto estudo sobre o cinema, negro, político e de horror, e a cultura afro-americana, cujas referências vão muito além da minha capacidade de reconhecê-las. Ryan Coogler leva o mérito por equilibrar o horror na balança com o musical sem perder em nenhum momento o que existe de mais característico em ambos, com uma boa dose de humor, e por inverter, brilhantemente, as crenças históricas e racistas de que o maligno vem do preto, aproveitando para demonizar (o ódio do) branco, enaltecer a riqueza presente na diversidade e devolver o blues, também outrora usurpado pelo racismo, a quem ele realmente pertence. Bravo.
Nota: 4,5 /5