Crítica: Malu
Malu – Ficha técnica:
Direção: Pedro Freire
Roteiro: Pedro Freire
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2023.
Elenco: Yara de Novaes, Carol Duarte, Juliana Carneiro da Cunha, Átila Bee.
Sinopse: Malu, uma mulher de meia idade com um passado glorioso, se vê presa em um caos existencial. A complexa relação com sua mãe conservadora e sua filha adulta torna a crise ainda mais aguda, em meio a momentos de carinho e alegria entre as três.
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Com muito a dizer, Pedro Freire, diretor e roteirista de Malu, filme disponível para aluguel digital, tenta equilibrar suas memórias e a invasão vulcânica de uma figura maior do que as recordações, num filme honesto, vivo e altamente doloroso sobre sua mãe, a atriz Malu Rocha. Baseado em suas memórias, o diretor coloca para análise uma mãe complexa, viva e sem filtros, frente a situações tão peculiares do cotidiano que jamais poderiam ser inventadas. Malu é um filme generoso por focar um olhar humano e elaborativo para uma mulher maior que a vida, que foi tombada pela própria vida a partir de traumas, violências, amores e insatisfações.
Malu é uma espécie de cinebiografia de Malu Rocha, atriz brasileira de teatro, que morreu em 2013, em decorrência de uma doença neurodegenerativa. O filme acompanha a vida da protagonista, Malu, vivida magistralmente por Yara de Novaes, a partir da chegada da filha Joana, interpretada pela excelente Carol Duarte. Joana passaria uns dias na casa da mãe e da avó, mãe de Malu, Lili, papel da também ótima Juliana Carneiro da Cunha. Tudo indicava que seria apenas um reencontro entre mãe e filha, mas, uma das primeiras cenas, é Malu em conflito com um padre que vai até sua casa, a pedido da mãe, pois, aparentemente, a filha está com problemas. Malu, logo de saída, dá o tom despojado, ácido e invasivo entre Lili e Malu, que moram juntas. Joana, que havia se afastado da mãe morando no exterior, faz os olhos do espectador que também redescobre como viver naquela família, ainda que por pouco tempo.
Malu claramente não corresponde aos ideais de mãe perfeita e isso é colocado para apreciação o tempo todo, especialmente nessa triangulação de três mulheres de idades, experiências e interpretações de mundo completamente diferentes. É visível como o diretor — talvez por conhecer demais a história que conta — sabe exatamente como dar o tom das interpretações e das nuances de uma mulher que estava em sofrimento. Malu estava em sofrimento e descontava, por não encontrar outros recursos psíquicos possíveis, na mãe e na filha, embora Lili e Joana, utilizassem Malu como bode expiatório para os próprios traumas e problemas. Malu é a trajetória de um trauma que acomete gerações diferentes.
Pedro Freire ambienta seu filme nos anos 1990, período recente da redemocratização, para também discutir os traumas do Brasil. Malu não se furta de mencionar o medo da repressão que ela e o então marido, pai de Joana, viveram durante a ditadura militar. Esse constante rememorar causa a impressão de que a vida de Malu, e também a de Lili, eram vidas repletas de passado. Observar Malu é observar uma mulher que em algum momento sofre um delírio psicótico que a tira do lugar neurótico da vida, incapacitando sua possibilidade criativa — Pedro Freire conta em seu texto ‘Toda Ficção é Memória’, escrito na edição de dezembro da Revista Piauí, que na sua infância, Malu têm um delírio psicótico que a impossibilita, em alguma medida, continuar sua criação artística.
Ao longo de toda a rodagem, parece haver a questão de como conviver com uma mãe que não correspondia aos ideais neuróticos da maternidade, mas que, ao mesmo tempo, era dotada de uma vivência e capacidade criativa que era maior do que ela era capaz de suportar. Malu é um filme que transborda afeto, delírios, traumas e ressentimentos. Pedro Freire faz um movimento corajoso ao colocar a avó Lili como fonte da continuidade de uma opressão familiar. Lili, apesar de ser uma mulher mais velha, não poupa Malu das suas microviolências, ora disfarçadas de cuidado, ora atuando deliberadamente para o prejuízo. Apegada à religião, Lili desprezava Malu por ter escolhido o teatro, e Malu fazia questão de demonstrar sua raiva em relação à mãe que, como conta, havia a internado sem consentimento, alegando que ela estaria “maluca”. Olhar para a avó como fonte, é também dar sentido a uma mãe que sofreu na mão da própria mãe, assim como Pedro e a irmã mais velha — a atriz Isadora Ferrite —, provavelmente sofreram na mão de Malu.
Toda essa complexidade entre a realidade, delírios, perda de memória, traumas, agressões, família e afetos, são perfeitamente bem acomodados pela brilhante atuação de Yara de Novaes que carrega o filme consigo. Malu é de Yara de Novaes, que de vez em quando dá espaço para Carol Duarte brilhar com ela. É possível pensar que Yara entendeu a complexidade de Malu, ao também se apoderar da mise-en-scène, assim como a Malu da vida real que, como Pedro registra em seu texto na Piauí, também invadia o espaço psíquico dos filhos, tamanho era seu amor e sofrimento pela vida. Malu era uma mãe grande, avassaladora e parecia não caber em si mesma, e Yara de Novaes compreende essa mulher com um brilhantismo arrebatador.
Pedro Freire se destaca num roteiro que cadencia suas ações e distribui ao longo da narrativa o interior daquelas mulheres com destreza e sentimentalismo modesto. Freire só tinha trabalhado com curtas-metragens e Malu é seu primeiro longa, demonstrando alguns deslizes para sustentar mais tempo de tela. Sua direção aposta em algo tradicional, como a câmera na mão e a escolha de planos mais simples, sem grandes destaques. Por outro lado, sua direção de atores é virtuosa. Freire também faz algo que é fascinante, especialmente por sua posição de filho, ao renunciar seu papel de juíz e colocar o personagem Tibira (Átila Bee), um homem gay que morava num cômodo externo da casa, para ser a pessoa que não julga os atos de Malu e a compreende. É bonito ver um personagem como Tibira reconhecer em Malu seu lugar de excluída e como uma força de criação e identidade. Ainda que Tibira saia da casa em algum momento e Malu sofra com a solidão e com a evolução do adoecimento, Malu não termina sua vida sozinha, provocando a tradicional melancolia de uma vida que poderia ser mais, mas acaba sendo aquilo que foi possível ser.
Malu é um filme fronteiriço por natureza, deslumbrante e que rejeita o sossego de uma vida pacata, para recontar a vida de uma mulher cheia de histórias, memórias, amores e sofrimento. Pedro Freire consegue equilibrar o lugar da memória familiar, ao mesmo tempo que conta de um Brasil que também sonhava mais, idealizava um mundo livre e artístico, reprimido pela Ditadura Militar, mas com Malu para enfrentá-los — que se assemelha com o recém-oscarizado Ainda Estou Aqui (2024). O primeiro longa-metragem de Freire consegue ser gracioso, voraz e intenso, mesmo com algumas simplicidades na direção que nem sempre contam a favor de sua história. Um brinde bem-vindo com a escalação de Yara de Novaes e Carol Duarte, que compreendem a intensa relação ambivalente de amor e ódio, entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, entre a realidade e as elucubrações do delírio. Malu, no final dos créditos, acaba sendo uma elegante homenagem a uma protagonista que se manteve viva até o último caminhar de uma corda bamba.
Nota: 4/ 5