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Artigo

Os elos narrativos de “Cangaço Novo”

por Felipe Ferreira para o Cinem(ação)

“Tua casa é onde tá seu sangue”

Essa frase dita por Zeza (Marcélia Cartaxo) a Ubaldo (Allan Souza Lima) ecoou no meu juízo e talhou todas as supostas certezas que eu tinha sobre família e seus laços de sangue. Conceito de família este que não está mais vedado (ainda bem!) àquela concepção católica, conservadora e heteronormativa que por muito tempo era o que chancelava o respeito e a moral das pessoas.

Família é a que a gente escolhe ou a que irremediavelmente fazemos parte? As palavras de Zeza não apenas inexora o local que nos acolhe, nos abriga, nos abraça. Mais do que isso, ela sentencia que em algum momento da nossa vida o sangue fala mais alto, se impõe. Um chamamento que dificilmente conseguimos ignorar e, sobretudo, negar. Na mesma densidade em que é um tecido vivo que percorre todo nosso corpo, ele também simboliza uma ligação eterna e carrega na sua composição características para além da esfera biológica. Carregar o mesmo sangue de um clã é como levar consigo um pouco de cada pessoa que compõem a árvore genealógica da nossa existência. O “sangue do meu sangue” expressa uma parecença coletiva, uma identidade compartilhada que, cedo ou tarde, ferve nas veias e faz a gente reconhecer os nossos ainda que as semelhanças se apaguem e as cores desbotem com o passar do tempo.

O homem é produto do meio?

Das tantas reflexões suscitadas pela série criada por Mariana Bardan e Eduardo Melo, uma delas foi a que se refere ao homem ser ou não ser produto do meio. O determinismo defendido por Darwin que tanto foi usado para mostrar que o homem é reflexo e objeto atuante do meio onde ele está, atravessa a história do protagonista Ubaldo que quando criança testemunha uma tragédia familiar e pelas consequências – seja da ação humana ou do destino – cresce vendo a paisagem de uma outra janela, da vista hostil e intrépida de São Paulo.     

O meio molda, constitui, mas não determina. O mesmo habitat que deixa suas marcas em quem fica é o mesmo que entranha seus laços em quem vai fincar suas raízes em outros lugares. Diante dele, o que devemos fazer? Aceitar o destino sem discussão e assinar com conformismo o que ele reserva pra nós? É uma dúvida cruel que sai do haicai de Leminski, atravessa em fúria as estradas da caatinga e faz o pensamento vagar na poeira infinita da vida. Naquela atmosfera pacata típica de uma cidade do interior, naquele reconhecimento que faz todo mundo pertencer um pouco à família do outro, naquela solidariedade genuína onde quem menos tem é quem mais dá e quem mais ajuda é quem deveria ser ajudado, a gente vai conhecendo com intimidade de cada um dos moradores da fictícia cidade de Cratará. Seus conflitos, seus segredos, seus fantasmas. 

A direção de Fábio Mendonça e Aly Muritiba (do ótimo filme “Deserto Particular) ousa nos planos, nos enquadramentos e nas cenas de ação. A fuga do óbvio nos coloca dentro da história fazendo com que nossa viagem seja sensorial e atravesse a imagem, o som, a ação.

A representatividade do elenco majoritariamente nordestino, se mostra ainda mais assertiva e exitosa por não cair na cilada e no desserviço de forjar uma representação estereotipada com sotaques pouco convincentes. O elenco enche nossos olhos pelo talento, pela entrega e pela intimidade. Se ambientar a história fora da exaustiva paisagem do eixo Rio-São Paulo amplifica os horizontes e as possibilidades narrativas, escalar um elenco ebulitivo dá ao público frescor e ineditismo.

Sem verbalizar uma palavra, Thainá Duarte nos hipnotiza com uma interpretação visceral e cortante. A partitura dos seus movimentos e a profundidade do seu olhar consegue expressar todo trauma e toda a dor da sua Dilvânia. 

E o que dizer da erupção vulcânica que é Dinorah? Alice Carvalho é, sem dúvidas, o grande acontecimento da série. Seu trabalho deixa uma marca cravada na nossa pele. Dinorah é lava que resiste a esfriar após a erupção da sua fúria. Seu ardor é intangível e permeia todos os membros de uma construção de personagem certeira em corpo, voz e movimento. Seus embates com Ubaldo carregam toda tensão e fúria de uma irmandade atravessada pela tragédia, pela vida. 

Hermila Guedes (Leinneanne) marca presença em mais um papel complexo, cheio de conflitos. A força da sua atuação faz coro à força feminina da série. Ela (sempre) brilha seja lá qual for a tela.

Outra atriz experiente que agiganta esse elenco feminino avassalador é Marcélia Cartaxo. Sua Zeza é personagem fundamental na história da família Vaqueiro e o esteio ora provocador ora apaziguador dos descendentes desse legado. Marcélia é uma das grandes atrizes que temos e deixa mais um excelente trabalho na nossa memória.

O pernambucano Allan Souza Lima carrega a difícil missão de dar vida – e manter viva – a trajetória do patriarca Amaro Vaqueiro. Seu trabalho de composição impressiona pelo cuidado, pela sensibilidade e pela viagem em queda livre na história do seu protagonista (Ubaldo Vaqueiro), que se antropofaga nas entranhas da sua própria origem para saber quem és. A virada de chave do bancário infeliz para o “cangaceiro” consciente da sua missão é feita de forma tão densa e catártica que todos os maniqueísmos baratos de vilão x mocinho derretem diante a torcida do público.

Sou ávido por carreiras artísticas bem construídas, sedimentadas numa escala crescente de personagens que nos permitem ver o processo de entrega e amadurecimento de cada ator, cada atriz. Ver a fúria indomável do elenco de “Cangaço Novo” e a atmosfera de verdade e pulsão que um grupo de artistas conseguem injetar numa obra talhada em raiz e identidade brasileira me faz ter certeza que há muitas histórias a serem contadas e, sim, elas não estão restritas ao cosmo da urbe paulista ou ao paraíso dos trópicos cariocas.

O elo vai muito mais além.

Sol-te.

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