Crítica: Anatomia de uma Queda
Anatomia de Uma Queda e a decisão de acreditar
Direção: Justine Triet
Roteiro: Justine Triet, Arthur Harari
Elenco: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner, Antoine Reinartz, Samuel Theis, Jehnny Beth.
Sinopse: Uma mulher é suspeita de ter assassinado o marido, e o seu filho cego enfrenta um dilema moral como única testemunha.
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A busca pela verdade, assim como pela justiça, parece ser algo inerente à condição humana. Desde que existimos e entendemos o nosso local no mundo, assimilamos nossos valores com base no que é verdadeiro e justo, construindo a nossa própria ideia de moral a partir daquilo que acreditamos que sejam esses ideais. Contudo, o que mal percebemos, ao menos de início, é que a verdade e a justiça são conceitos cujo relativismo é fator constituinte.
Em um tribunal, por exemplo, o que mais importa não é encontrar a verdade una ou a justiça inquestionável, longe disso. O que está em pauta em um julgamento tem muito mais a ver com a habilidade dialética e argumentativa de uma discussão, a capacidade de convencimento e a riqueza do debate. Em uma corte não há verdade absoluta, não há justiça que agrada a todos, apenas melhores formas de apresentar a sua versão e, acima de tudo, uma escolha de quem julga no quê acreditar. Algo que fazemos todos os dias.
Em Anatomia de Uma Queda, Samuel Maleski é encontrado morto na frente de sua casa no que parece ter sido uma queda do segundo ou terceiro andar do chalé. No alto de uma montanha, Daniel, seu filho de 11 anos acompanhado do seu cão-guia, Snoop, encontra o corpo já sem vida quando passa a gritar pela mãe, Sandra, que sai da casa e liga para a ambulância enquanto, aparentemente em choque, tenta consolar o filho. A hipótese de uma terceira pessoa na casa no momento do acidente é descartada rapidamente e logo sobram apenas duas versões: Sandra acertou o marido com um machado e provocou sua queda, ou Samuel se suicidou e, durante a queda, bateu a cabeça.
O primeiro ato parece guiar o espectador no sentido de tentar encontrar resposta para a pergunta “quem”: o foco nas reações imediatas, a reconstrução da cena do crime e o uso de diferentes perspectivas para isso, presentes também na alternância no uso de câmera e tratamento de imagem, induz o espectador a ter seu “suspeito favorito”. No segundo ato, o filme passa por uma lógica diferente, existe uma procura pelo “porquê”: o áudio encontrado e a reconstrução da briga do casal permitem que o espectador duvide do seu até então principal suspeito, levando em consideração a complexidade do relacionamento e maiores dúvidas sobre a saúde mental da vítima. A questão passa a ser a motivação.
No terceiro momento, a inclusão de uma memória crucial de Daniel muda o destino do julgamento e a reconstrução de um episódio vivido pela criança é capaz de mexer com as nossas emoções profundamente, levantando questionamentos muito mais profundos e que mudam, uma última vez, o paradigma do quem x porquê: o crer. O diálogo entre Daniel e a funcionária do Ministério Público que destinam para lhe proteger é a chave do filme e a conclusão do mistério: não existe um desfecho. Esse é o verdadeiro cerne da questão. Se não há como voltar no tempo, não há verdade mais justa que a outra. O que nos cabe é, pura e simplesmente, a decisão de acreditar.
Triet consolida seu filme em torno de um exercício dialético-argumentativo o qual pela ambiguidade da imagem, pela reconstrução das diferentes perspectivas (inclusive pela diversidade de tipos de mídia) e pela exploração cênica, a própria mise-en-scene, acaba ganhando vida através da forma. Existem as versões da mídia, a versão do psiquiatra, do médico legista, da perícia, do filho, do advogado, do parquet. Todas estas são apresentadas com igual valor, o que torna tudo possível. Como o Cinema, as múltiplas verdades cujos argumentos irão variar a fim de justificar cada crença, nada mais farão do que direcionar quem assiste para o que se apresenta enquanto a única afirmativa inquestionável: a raiz da questão não mora em responder as perguntas em si, e sim em provocar no espectador a vontade de acatar uma ou outra versão de uma mesma história.
Dessa forma, Anatomia de Uma Queda me lembra uma versão de 12 Homens e Uma Sentença (1957) na era da denominada de “pós-verdade”. Enquanto o júri do filme clássico de Lumet se manifesta em tela pelos 11 votos a favor da condenação e apenas 1 voto contra, o de Anatomia de Uma Queda julga silenciosamente em uma sala escura. O cinema moderno em sua essência é aquele que se manifesta no filme de Triet, o que joga para o espectador a palavra final, o exercício-último de ir para casa com uma sensação de que não houve desfecho. Ainda que tenha.
O filme de 1957 é um exercício argumentativo sobre encontrar a dúvida e transformá-la em força-motriz, assim como o de 2023. No entanto, enquanto um ainda parece crer que a verdade existe em sua forma ideal, encontrando viabilidade na dúvida, o outro descarta por completo a possibilidade de encontrá-la, tirando dos argumentos até mesmo parte da sua validade enquanto algo que pode ajudar a construir qualquer lógica. A ideia de verdade que existe na sociedade moderna e, logicamente, perpassa pelo Cinema atual, é a de que o espectador irá decidir, ultimamente, em quê acreditar.
Pode-se criar maiores convencimentos para isso, mas não é necessário. Ao fim, quem julga no escuro de uma sala apenas crê na imagem em sua multiplicidade e a partir disso, formula sua própria ideia de verdade. Constrói seu próprio ideal de justiça. Leva para casa, então, parte do filme consigo, como uma marca que dificilmente irá sair (sei porque ficou comigo por meses, desde maio deste ano), ecoando um questionamento que nos lembra o dilema literário clássico de Capitu, Bentinho e Machado de Assis, onde mais do que se perguntar quem ou porquê fez, se encontra, na impossibilidade de responder com certeza, o conforto agridoce da ambiguidade e da própria validação da sua crença.