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Crítica: Zona de Interesse

Zona de Interesse
Direção: Jonathan Glazer
Roteiro: Martin Amis, Jonathan Glazer
Elenco: Sandra Hüller, Christian Friedel, Freya Kreutzkram, Ralph Herforth, Max Beck.
Sinopse: O comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, e sua esposa Hedwig, se esforçam para construir a vida dos sonhos para sua família em uma casa com jardim ao lado do campo.

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Como escrever sobre um filme cujo impacto é sentido após meses, quase um ano após assistir? Perguntei a mim mesma, algumas vezes, se deveria esperar que Zona de Interesse fizesse a sua estreia no Brasil para que eu pudesse assisti-lo novamente e, só então, desenvolver algumas palavras sobre o filme. Entretanto, notei, após uma coletiva de imprensa com Jonathan Glazer e Jim Wilson na última terça-feira (02), que o meu distanciamento temporal de Zona de Interesse pode até ser de oito meses, contudo, em minha memória, seu efeito está tão nítido como se tivesse assistido ao filme ontem.

Acredito que boa parte disso se deve ao fato de que Zona é, mesmo, indigesto. Enquanto muitos filmes te fazem chorar, gargalhar, vomitar, entre outras reações imediatas e viscerais, a obra de Jonathan Glazer é como um soco no estômago, diferente de muita coisa que você pode ter visto antes, um soco destes tão fortes que te deixam sem ar por alguns segundos. No meu caso, sem palavras durante meses. Lembro que minha imediata reação em Cannes após uma das primeiras sessões do filme para o mundo foi de absoluto choque. Saí achando que não tinha gostado porque, em certa medida, assimilei por osmose (assim como muitas pessoas) a falsa crença de achar que um filme deveria provocar uma daquelas reações instantâneas e viscerais. Me deparei com o novo, e não consegui reagir.

Os primeiros minutos do filme já são uma preparação quase ritualística: a tela e o som inauguram um momento único, em tons de vermelho e com um ruído similar ao ruído branco, que logo se dissipam em uma imagem bucólica, dando espaço para a entrada dos sons da natureza. A partir daqueles segundos iniciais, você está em outro lugar. Não que normalmente os filmes sejam diferentes disso: os primeiros 20 minutos de qualquer obra, especialmente nos cinemas, já pressupõem uma abstração total do espaço “real” do espectador. Contudo, Glazer separa um momento específico de tela com o intuito nítido de preparar uma imersão cinematográfica que vai além da abstração, é a alienação total, estratégica e desumana, de uma família inteira (alegoricamente, todo o mundo naquele momento) frente aos horrores da Segunda Guerra Mundial.

Anos depois da segunda guerra e centenas de milhares de filmes feitos sobre o tema, a grande maioria dos que tiveram sucesso de bilheteria feitos sob a perspectiva estadunidense do ocorrido, eu arrisco dizer que nunca um filme com perspectiva tão ousada foi tão bem-sucedido em imprimir tamanho horror. Ao adotar a perspectiva de uma família comum de um militar nazista que em meio a guerra tem de ser transferida para uma casa cujo “quintal” é um campo de concentração, o filme se arrisca em nome de uma reflexão muito mais complexa do que a exploração da dor de uma tragédia humana sem precedentes, transformando-se em um ensaio cinematográfico de imensa qualidade e equivalente profundidade sobre a banalidade do mal.

Enquanto filmes que circundam a mesma temática insistem em um maniqueísmo pragmático do bem contra o mal, Zona de Interesse questiona a crueldade humana e a sua capacidade de ignorar, não pensar de fato, sobre os efeitos que a crueldade sem precedentes pode causar a outrem. Enquanto os afazeres domésticos e o cotidiano familiar continuam tão comuns quanto qualquer outro, centenas de judeus logo ali, do outro lado do muro, caminham em direção a mais uma câmara de gás, números posteriormente adicionados aos dados de um dos maiores genocídios da história. Enquanto o protagonista, interpretado brilhantemente por Christian Friedel, se preocupa com a sua ascensão de patente dentro da hierarquia militar, nem que isso custe a propagação da violência de forma institucional, crianças são violentadas e assassinadas apenas por serem judias.

Poucos quilômetros separam duas realidades completamente distintas, mas mais interessante é que em nenhum momento Jonathan Glazer precisa filmar judeus, bombas ou confrontos para expor seu ponto, já que o simples ato de saber o que acontece nesse espaço extracampo é perturbador o suficiente. À medida que o tempo passa, o incômodo escala e o filme se torna uma declaração flagrante de como muitos de nós temos a facilidade de se distanciar de algo que não vê e, portanto, nada sofre. Em um contexto contemporâneo, o filme dialoga facilmente com os horrores da guerra entre o Hamas e Israel, no que tange à presença desse horror estampado em manchetes e redes sociais, mas que acontecendo a quilômetros ou metros de pessoas do mundo inteiro, tanto faz – não há de cessar.

Junto à baixa saturação das cores, geralmente tons pastéis pálidos e sem vida, uma trilha sonora nauseante e atuações tão sóbrias quanto o conjunto da obra, a câmera austera de Glazer, que tudo observa a uma distância segura, é a representação formal e estética da posição da família frente ao sofrimento alheio o qual insistem, deliberadamente, em ignorar. Nosso equivalente cotidiano, penso eu, seria a câmera dos smartphones, cuja impressão de que estamos próximos é apenas uma farsa paradoxal – estamos cada vez mais distantes e dormentes às desgraças alheias. A sociedade do indivíduo, não da coletividade, pensa antes em si e no seu bem-estar e, dentro do filme, está representada por um personagem que antes preza por uma hierarquia pífia, que na dimensão da tragédia histórica que ajudou a construir de dentro do seu privilégio institucional.

Diante dessa reflexão, é interessante perceber como todo filme é um espelho do seu tempo e o diretor, além de refletir essas ideias da contemporaneidade aqui, o faz diante de um cinema moderno que vê virtudes na dilatação do tempo. Se assemelhando às ideias de cinema de cineastas como Apichatpong Weerasethakul e Chantal Akerman, no sentido de construir uma atmosfera única através do prolongamento dos planos, principalmente, mas não apenas, Glazer é autor de um filme cuja atmosfera milimetricamente calculada e rigor formal ainda deixa uma brecha para sentir. Nem que esse sentir esteja mais próximo da tortura.

Sua maior preocupação, nesse sentido, é imergir o espectador em uma experiência que pode ser tão violenta quanto um filme de terror. O que, em certa medida, é o que Zona de Interesse é para mim: um filme de terror. O vômito final é a catarse do sentimento maligno inebriante, resultado do acúmulo de tanto horror que intoxica. Voltando para minha experiência pós-sessão em Cannes, o choque foi paralisante. O horror ecoou na minha cabeça por horas, depois meses, em breve fará um ano. Esses são os tipos de filme cuja experiência nunca esquecemos, é para sempre.

Para mim, Zona de Interesse é uma obra-prima sem precedentes, não apenas dentro da filmografia de Glazer como na história do cinema. Acredito, veementemente, que o filme é a obra cinematográfica mais capaz de fazer jus ao pensamento central de Hannah Arendt na década de 60, mas também do pensamento pós-moderno que descrevem autores como Zygmunt Bauman. É o mal que acontece ao outro, mas cuja consequência eu me nego a calcular. Pensar é mal visto, reproduzir é mais confortável.Um filme para ficar gravado na História.

  • Nota
5

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