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Crítica: Jogos Mortais X

Jogos Mortais X
Direção: Kevin Greutert
Roteiro: Pete Goldfinger, Josh Stolberg
Elenco: Tobin Bell, Shawnee Smith, Synnøve Macody Lund, Steven Brand, Renata Vaca, Joshua Okamoto, Octavio Hinojosa, Paulette Hernandez, Jorge Briseño, Costas Mandylor.
Sinopse: John Kramer, doente e desesperado, viaja para o México para um procedimento médico experimental, na esperança de uma cura milagrosa para seu câncer, apenas para descobrir que toda a operação é uma farsa para fraudar os mais vulneráveis.

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“Eu vou morrer, Amanda”. John Kramer (Tobin Bell), o serial killer conhecido como Jigsaw, morreu no terceiro filme de uma franquia que chega ao seu décimo capítulo neste Jogos Mortais X, mas quando o assassino diz essa frase para sua aprendiz, lá pela metade deste último filme, que se passa entre o primeiro e segundo, somos tomados por uma espécie de melancolia poucas vezes sentida nos longas anteriores. Mais preocupada em exercer o torture porn em meio a tramas rocambolescas, é verdade que a franquia Jogos Mortais nunca deu muito espaço para o sentimentalismo, mesmo em suas tramas com vocação para o melodrama. Aceitar a morte de Kramer, no entanto, sempre pareceu difícil para os responsáveis pelos filmes consequentes da série, provavelmente arrependidos por terem matado o personagem no terceiro filme e incapazes de se desapegar de seu ícone principal. Entre promessas de que “os jogos estão apenas começando” e proclamações sobre legado, Jigsaw pairou como um fantasma nos filmes após sua morte de toda forma que podia, de flashbacks para preencher uma lacuna do tempo passado ou a desculpa de linhas temporais paralelas. Não importava como, John Kramer sempre reaparecia com uma nova informação relevante sobre o presente, com uma nova armadilha mortal arquitetada antes mesmo de sua morte para que os jogos continuassem.

Nem mesmo o intitulado “Capítulo Final” – o sétimo filme, foi capaz de impedir Jigsaw de retornar ou os jogos de prosseguirem. Se os fãs de terror bem sabem que esses finais não querem dizer muita coisa, os dois filmes seguintes da franquia após esse “final” foram marcados, principalmente, por uma falta de propósito, uma vez que tentavam amenizar o pornô de tortura tão associado à serie e atingir outros tipos de públicos com a faixada de uma identidade nova, sem muito sucesso criativo e comercial. Em crise de identidade, a franquia volta mais uma vez para a figura de Kramer e para o torture porn e deixa ecoar os resultados dessa crise por toda a duração de Jogos Mortais X, encontrando algum tipo de verdade – interna e externa – no processo. Pela primeira vez na franquia, Kramer é o real protagonista do filme, e o homem que vemos aqui é menos um vilão psicopata e mais um idoso compassivo e injustiçado, pelo qual deveremos – por conta de circunstâncias da trama – torcer. Sua ideologia agora ganha contornos de vigilantismo, e essa mudança vem tanto de uma consciência extra-filme de entregar o fã de terror quer, do ponto de vista de entretenimento, quanto de uma necessidade de se reinventar para além do torture porn e dos tropos já manjados da franquia.

Se essa inversão de alinhamento moral de John poderia ser encarada com receio e até desdém, o que ocorre aqui é um interessante curto-circuito. O filme nos coloca sob o ponto de vista do perturbado Jigsaw e se esforça para atribuir alguma humanidade para o personagem, aceitando sua lógica defeituosa como verdade absoluta do universo. Para corroborar essa lógica, o roteiro de Pete Goldfinger e Josh Stolberg (os dois piores roteiristas que passaram pela franquia, mas que aqui finalmente encontram algo a dizer) opera pela noção do pior dos males ao trazer vilões caricatos como antagonistas à John. Desesperado para encontrar uma cura para seu câncer terminal, Kramer viaja até o México para fazer um tratamento experimental que oferece uma cura para sua doença, apenas para ser enganado por um grupo de impostores inescrupulosos disfarçados de médicos, liderados pela vilanesca Cecilia (Synnøve Macody Lund). A vingança de John – agora retratado como um pobre injustiçado – virá através das armadilhas mortais já conhecidas da série, mas o que se vê antes de que o banho de sangue comece a acontecer é a tentativa de uma espécie drama singelo sobre as esperanças que um senhor com câncer tem de ser curado, drama este que aqui ganha força mais pela presença de Tobin Bell e a gravidade que o ator traz pro personagem. 

Uma das cenas mais emblemáticas de Jogos Mortais X é aquela na qual Kramer está sentado em um banco de parque, a luz do dia, refletindo sobre a vida de forma sentimental e calma, enquanto anota algo em seu caderno, apenas para um corte seco revelar o que está sendo rabiscado: o esboço de uma das armadilhas mais vis e cruéis da série (o crucifixo do terceiro filme), o que causa um contraste entre o mundo de horror e de um sadismo essencial do torture porn com o estudo de personagem de um pobre senhor com câncer. O diretor Kevin Greutert (melhor diretor que já passou pela serie após James Wan) aborda o drama de John com uma dignidade que teoricamente não combinaria com a vulgaridade de como a violência e tortura é retratada aqui, por vezes mais pela obrigação de seguir uma estética que já se tornou convenção da franquia. A audiência ri na cena do parque pois reconhece o contraste absurdo, mas não se pode dizer que o filme não tenha consciência deste contraste. Felizmente, ele não pende pra auto ridicularização meta como o insosso Jogos Mortais: Jigsaw (2017), e essa crença tanto no “filme de drama sobre um velho com câncer” quanto no “filme de tortura explícita” fortalece Jogos Mortais X.

Aqui, até os monstros têm coração: colocar adultos nas armadilhas vale, mas mexer com criança é impensável. Não importa se Kramer já colocou crianças em situação de quase morte em filmes anteriores da franquia (Jogos Mortais). De repente, sob a ótica meio de eulogia grandiosa e revisionista que o filme faz para o protagonista, John pode até ser a voz da razão. Nesse sentido, uma sequência de inversão de papeis presente em jogos Mortais X evoca o excelente Rejeitados Pelo Diabo (2005), de Rob Zombie, e, enquanto o filme de Jigsaw não alcança exatamente a catarse presente no filme de Zombie, ele consegue obter êxito em sua intenção de subverter vilões para mocinhos sem prestar muitas contas ao que veio no passado. Isso se reflete muito na nova dinâmica entre Kramer e sua aprendiz, Amanda (Shawnee Smith). Se relação entre os dois sempre foi marcada como um ápice emocional da franquia, a dinâmica retratada aqui os fortalece não só como figuras de pai e filha, mas também como parceiros que só querem tornar o mundo melhor – do jeitinho deles. E no absurdo dessa situação e inversão de papeis como mocinhos se encontra muito do prazer deste último filme.

O papel de absolvição e santificação para John adotada por Jogos Mortais X acaba fazendo mais sentido aqui do que em todos os outros filmes da série, até mesmo porque o personagem sempre foi o Deus ex machina personificado. Está sempre um passo à frente de todo mundo em todos os outros filmes, de formas ilógicas e absurdas, sabendo desenrolares da trama de antemão. Essa lógica se eleva no novo filme quando até mesmo uma sequência de alucinação de Kramer, que envolve alguém sendo torturado, é filmada não com a insinuação de uma lógica dos sonhos, mas com a mesma lógica visual das outras cenas do filme. Se é comum que filmes adotem esse recurso às vezes mais para enganar a audiência do que para demarcar alguma pulsão, anseio ou desejo de um personagem, em Jogos Mortais X a “sequência de sonho” ganha um novo sentido por conta da estética particular que essa série de filmes possui. John é tão onipresente que ele controla até mesmo o filme que assistimos.

Pode ser que nesse controle resida a melancolia do “eu vou morrer, Amanda” que John diz para sua companheira em momento íntimo no meio filme. Obviamente John sabe que vai morrer pois está com câncer, mas nessa chave da autoconsciência partilhada entre os roteiristas, o diretor e o próprio Jigsaw, é como se o assassino estivesse vendo não só o próprio futuro dentro da franquia, mas, entre um número de coisas, reconhecendo a mortalidade de seu próprio intérprete (Tobin Bell já possui 81 anos e sente-se o peso dessa idade em cena), e um marca na cultura pop bem cimentada. John Kramer vai morrer, mas, em Jogos Mortais X, não antes de ser realocado ao posto de protagonista, justiceiro e mártir, para só assim poder, ao final, caminhar em direção a luz divina, sagrada e purificante – uma imagem com sua parcela de breguice, que nunca imaginaríamos num filme como Jogos Mortais, e que não funcionaria se esse décimo filme não acreditasse tanto nela.

  • Nota
4

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