Crítica: Mato Seco em Chamas - Festival do Rio 2022
Cinema Nacional

Crítica: Mato Seco em Chamas – Festival do Rio 2022

Mato Seco em Chamas – Ficha técnica:
Direção: Adirley Queirós, Joana Pimenta
Roteiro: Adirley Queirós, Joana Pimenta
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2022 (Festival do Rio)
Sinopse: Léa conta a história das Gasolineiras de Kebradas, tal como ecoa pelas paredes da Colmeia, a Prisão Feminina de Brasília, Distrito Federal, Brasil.
Elenco: Débora Alencar, Andreia Vieira, Gleide Firmino

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Ao receber um dos muitos prêmios por Mato Seco em Chamas na cerimônia de encerramento do Festival do Rio, Adirley Queirós disse: “a mim interessa a desordem, viva o Brasil e viva a desordem!”. A frase ficou comigo por muito tempo. Penso que em um Brasil onde a “ordem e o progresso” viraram lema de extrema-direita e, hoje, significam violência e retrocesso. Interessar-se por um Brasil e por um Cinema de pura desordem significa rebelar-se contra o que há de conservador e nefasto no sistema e romper, assim, com o que é esperado da arte e do povo nestes tempos de crise. Revolucionar, não acuar-se.

E Mato Seco em Chamas é, entre muitas palavras, uma revolução. Ao caminhar na linha tênue entre a ficção e a não-ficção, a história de duas irmãs que juntas protegem uma refinaria ilegal de petróleo no centro de Ceilândia (DF), Mato Seco em Chamas se apresenta enquanto um filme futurista, um drama familiar e um documentário Coutiniano: tudo junto e misturado, uma ode à desordem. O filme se inicia com os relatos bastante pessoais (e naturalistas) de Léa, perpassa pela forte estética apocalíptica e futurista (em uma espécie de Mad Max brasileiro) e se encerra no auge de sua forte e atualíssima crítica social, deixando cair na nossa frente o véu da ficção que esteve presente o tempo inteiro e, então, abrindo um mundo inteiramente novo, feito por pessoas de carne e osso.

E se tem alguém que, na história do cinema brasileiro, se interessava por pessoas e suas histórias, esse alguém foi Eduardo Coutinho. Em Jogo de Cena (2007), o documentarista faz algo parecido com o que Adirley Queirós e Joana Pimenta fizeram em Mato Seco em Chamas. Em 2007, Coutinho fez uma obra-prima que articulou relatos de pessoas “reais” com a dramatização ficcional destes relatos, feitos por atrizes. Até certo ponto, é difícil saber o que é ficção e o que não é. A quem pertence o relato que assistimos? À atriz ou à “pessoa comum”? De quem, afinal, seria essa história? E no final isso nem importa, pois Jogo de Cena vai além e é um grande filme por sublinhar não apenas a importância da montagem na técnica para formação de sentido (algo Eisensteiniano), mas a própria relevância do Cinema enquanto uma arte capaz de provocar o mais intenso sentimento de alteridade, de empatia.

Pois viver, nem que por algumas horas, a vida de outrem e entender seus dilemas significa, no Brasil de 2022, poder resgatar o que tanto falta atualmente em nossa convivência social: a humanidade. Quando se coloca uma fina camada de ficção à frente da história das Gasolineiras de Quebradas, o que se passa em Ceilândia ganha uma vida diferente. O que também faz parte do que Coutinho fazia: transformar pessoas comuns e seus relatos em histórias de Cinema. Diante dessa arte, os seus cenários do cerrado, formados por terra vermelha e muito sol, ganham um contexto diferente em Mato Seco do que seriam em um documentário. Estão mais para um palco de filme apocalíptico, onde o cenário inóspito ao mesmo tempo que atrai, também nega qualquer tipo de vida, ou ao menos, uma que seja feliz dentro daquele contexto.

A ficção permite, então, que Queirós e Pimenta consigam moldar a realidade vivida por aquelas mulheres de tal modo que a não-ficção jamais conseguiria fazê-lo. E, por consequência, o filme até um pouco antes do terceiro ato tem um impacto diferente no público: acreditamos plenamente que estamos diante de uma história inteiramente ficcional. E que, por mais natural que aqueles diálogos se pareçam, no máximo estaríamos diante da presença de ótimos “não-atores”. É impossível, de fato, se dar conta de que estaríamos de algo bem diferente disso, e essa é realmente a magia por trás de tudo.

Em termos de experiência, a projeção isola o espectador até mais que a metade de sua duração em um mundo próprio, criado por nada menos do que a própria realidade – e o que se pode manipular desta. Ou seja, pelo Cinema. Apenas por isso, Mato Seco em Chamas já é um filme revolucionário. Pois, perceba que, diferentemente de Jogo de Cena, aqui a confusão entre a ficção e a não-ficção ultrapassa para além da técnica da montagem. É a direção de arte, a fotografia, a direção do elenco, a trilha sonora e uma gama imensa de outros elementos que estão à disposição da sétima arte que são capazes de isolar esse espectador e mantê-lo, por um bom tempo, sob a ilusão de uma narrativa inteiramente fictícia.

Quando decide retirar de nós esse véu da ficção, o filme o faz com outros elementos que são próprios do cinema não-ficcional, que são elementos próprios do documentário. A narração em voice-over surge como uma quebra brutal de expectativa e, acompanhada de uma projeção in loco do inquérito policial que denuncia Léa como traficante de drogas novamente encarcerada, nos arremessa para a realidade sem nenhum tipo de aviso prévio. A história que antes se passava pelos nossos olhos travestida de ficção, agora se desnuda em nossa frente e expõe totalmente nossas queridas personagens como nada mais que humanas.

É essa humanidade que Mato Seco em Chamas representa para todas essas pessoas das quais o Estado arrancou a voz – especialmente mulheres. Com um recorte no protagonismo feminino, o filme enquanto arte concedeu palco, voz e a possibilidade de fazer história, para duas irmãs invisibilizadas e marginalizadas pelo mundo do crime na esquecida Ceilândia. Isso fica muito claro quando Joana D’Arc quebra a quarta parede pela primeira vez e comenta diretamente com a câmera sobre a felicidade da sua irmã Léa ao saber que iria participar de um filme. Para Léa, naquele momento, é como se a sua história e a da irmã fossem finalmente importantes o suficiente para serem contadas.

Isso é humanizar quem, ao contrário do que o governo atual pensa, é plenamente digno de ser ouvido. Sempre foi. As mulheres da prisão feminina de Brasília, neste filme, representam tantas outras que dedicam uma vida inteira para a família e para os filhos, com muita resistência, mesmo diante das mais terríveis adversidades impostas pelo sistema prisional brasileiro, onde a injustiça, a violência e a desumanidade fazem morada. E, quando ideologias fascistas passam a habitar a mente de vários brasileiros, se faz necessário olhar para essas pessoas, que representam uma parte invisível da nossa realidade e resgatá-las do esquecimento, fazendo florescer essa humanidade que anda tão perdida por meio dos relatos do próprio povo.

A imersão total provocada por esse filme é um marco no cinema nacional que conversa, mais que nunca, com esse cenário político-social atual. Diferentemente de filmes que buscam conscientizar seu público com um bê-a-bá raso, reproduzindo diálogos ipsis litteris de “textões” de redes sociais, achando que são corajosos apenas por isso, Adirley Queirós subverte essa ideia de que é preciso subestimar o espectador para poder fazê-lo mais consciente. É preciso, para além disso, impactar de verdade. Um impacto que se dá sem meias palavras ou discursos batidos, apenas com entendimento integral de como funciona o Cinema.

Repetindo o feito de Cabra Marcado Para Morrer, do já anteriormente citado Eduardo Coutinho, Mato Seco em Chamas também irá marcar o cinema nacional como um filme onde o imprevisível se uniu à desordem para fazer História. No entanto, na contramão da declaração de Coutinho sobre não querer fazer um filme político ou um filme manifesto, Adirley Queirós e Joana Pimenta não marcam o cinema brasileiro “sem querer”. Seu filme possui um grande impacto como um filme político e é, até certo ponto, bastante intencional pois reflete, como se um documento histórico fosse, o Brasil de hoje com muita clareza.

O que não está claro ainda, no entanto, é se os próprios autores já possuem consciência real do impacto da obra para o cinema nacional dos próximos anos. Talvez, seu impacto com total clareza só poderá ser percebido posteriormente, quando outros filmes passarem a ser abertamente influenciados por essa ode à desordem feita por estes diretores. Ou, talvez, quando a crítica internacional tiver acesso a essa pequena obra-prima e passarem a reconhecer em massa o que nós, pelo menos em parte, já estamos reconhecendo: que estamos diante de uma revolução.

A sensação que Mato Seco em Chamas deixa é de testemunho. Mais que espectadores, testemunhamos a história sendo feita. E nos deixamos ficar atônitos por essa narrativa desordenada de caos, humanidade, revolução e resistência. Inteiramente feito por quem acredita na teoria do caos, da qual se depreende que a desordem é capaz de encontrar seu próprio padrão organizacional, esse filme é a mais perfeita forma de relatar o que passamos nesse ano. E, tenho certeza, será visto assim por muito tempo.

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