Um ensaio sobre o filme Phantom Lady de 1944
Eu Cinéfilo

Eu Cinéfilo #57: Mulheres-fantasmas: um ensaio sobre o filme Phantom Lady de 1944

*por Daniel de Assis

Certos filmes, passados alguns anos, começam a desvanecer na memória, restando vestígios de cenas que, por alguma razão, mais nos marcaram. Anos atrás, quando assisti pela primeira vez ao filme Phantom Lady de 1944, pouco conhecia do cinema noir e seus personagens de “moral duvidosa” ou sua cinematografia característica, com luzes e sombras tão contrastantes quanto uma pintura de Caravaggio. Tudo era apenas belo, instigante e — ao menos para mim — novo. Talvez tenha sido esse ar de novidade que, ao mesmo tempo em que preservava certos momentos do esquecimento, deu a esses vestígios remanescentes um verniz dourado, cooperando para que o filme permanecesse em minha memória como algo muito especial, além de abrir uma porta, jamais fechada, para explorar cada vez mais os clássicos do cinema.

Após reassistir ao filme, descobri que minha mente havia apagado algumas atuações mais caricaturais, conveniências narrativas e, até mesmo, o longo monólogo do vilão no fim da trama, em uma exposição verborrágica de seu maquiavélico plano. A mente pode pregar algumas peças, não é mesmo?

Segundo Paul Ricoeur (2007), a memória, pelos pressupostos platônicos, poderia ser definida como “uma representação presente de uma coisa ausente”. Considerando isso, a principal “representação” que eu conseguia recordar (a velha anamnesis) era a fatídica cena na qual Carol “Kansas” Richman, interpretada de forma inesquecível por Ella Raines, munida apenas do olhar e coragem, conseguia aterrorizar um barman. Lembro-me de como, abalado por sua presença, o pobre homem chega a derrubar um copo, suscitando um sorriso cruel de satisfação em Carol. Posteriormente o barman é perseguido pelas ruas em plena madrugada. Chega a ser cômico vê-lo fugir aterrorizado daquela pequena e determinada figura… perseguição que põe fim à sua vida.

Algo a se destacar é que a “Carol” que protagoniza esses momentos é bem distinta da secretária dedicada e apaixonada que inicia a trama. A necessidade fez da jovem do Kansas uma femme fatale, aterrorizando uns, seduzindo outros, em sua implacável jornada por justiça. Ou amor.

Foi o desejo de não apenas reviver a experiência fílmica, mas também de tentar compreender o porquê daquela cena, dentre tantas outras — e dentre tantos filmes —, ter resistido ao tempo, decidi reassistir ao filme. Esse foi apenas o primeiro passo em direção a uma maior compreensão da obra, passo que foi seguido da leitura do romance de Cornell Woolrich que serviu de base para a película, culminando em alguns artigos que resultaram no ensaio a seguir. Prepare-se para uma breve viagem povoada por fantasmas.

Na companhia de um fantasma

Acredito ser um bom momento para esclarecer do que se trata essa história. O filme “Phantom Lady” de 1944 — adaptado do livro de Cornell Woolrich, publicado em 1942 — trata do dilema vivido por Scott Henderson, um arquiteto que, após um desentendimento com a esposa, encaminha-se até um bar onde terá o curso de sua vida alterado. No local, ele conhece uma mulher — trajando um curioso chapéu preto — e acaba por convidá-la para acompanhá-lo até um show na Broadway. A ideia seria não desperdiçar os ingressos que planejava usar com Marcella, sua esposa. A mulher aceita sob a condição de que ambos não revelassem seus nomes. Seriam apenas “companheiros durante a noite”. Trato feito. Após o show, a misteriosa mulher, interpretada por Ann Terry, é deixada no bar e Henderson retorna para casa, planejando uma reconciliação com Marcella. Plano jamais executado, pois, ao chegar, descobre que sua mulher foi assassinada.

Como Marcella não chega a aparecer no filme, o espectador constrói sua figura a partir de relatos do marido e, futuramente, do próprio assassino, pelos quais acabamos de evocar sua imagem, com apenas uma pequena ajuda, é claro, de sua representação que aparece brevemente em um quadro. Na pintura, vemos uma mulher loira, magra e de expressão tranquila, aparentando uma passividade que em muito se contrapõe às narrativas que ressaltam sua crueldade e vaidade.

Inicia-se, então, o grande conflito da história. Após chegar em casa e ser surpreendido por policiais na cena de um crime, Henderson tenta convencê-los de que não estava em casa durante o assassinato, mas na companhia de outra mulher, uma mulher que sequer sabia o nome. Além disso, ele mal consegue dar uma descrição precisa de sua acompanhante, com exceção da idade aproximada, cor do cabelo e… do bendito chapéu. Um relato muito vago e suspeito.

Acompanhado dos policiais, com destaque para o Inspetor Burgess (Thomas Gomes), Henderson refaz os passos daquela noite — do bar ao táxi, do táxi ao teatro —, mas, curiosamente, todos que o reconhecem dizem não se lembrar de que havia uma mulher em sua companhia. É como se ela jamais tivesse existido, assemelhando-se mais a um falso álibi inventado por um marido homicida. Ou um fantasma.

Antes de avançar, é importante esclarecer como pretendo desenvolver a ideia de fantasmaneste ensaio. Esse conceito, retomado de Platão, também poderia ser traduzido como “simulacro” e já foi muito bem discutido e analisado por Ricoeur, Deleuze e muitos outros que estudaram suas obras — também utilizarei aqui outros artigos, como o produzido por Larissa Rezino e Pedro de Souza.

O fantasma/simulacro, segundo esses autores, seria justamente uma imagem produzida com o objetivo de “ludibriar” alguém. Considerando isso, e retomando que a lembrança pode ser tida como a “representação presente de algo ausente”, a questão que o fantasma platônico põe em debate — no contexto da memória — é a natureza dessa representação, se ela corresponderia a uma “verdadeira” impressão deixada na memória, um evento que “de fato” teria acontecido, em lugar de pura “fantasia”, algo apenas criado pela imaginação. Por isso, poderíamos dizer que nossa querida “dama fantasma” seria de fato um fantasma. Por hora, isso se restringe à perspectiva dos policiais, mas trataremos mais disso adiante.

Analisando alguns aspectos da obra

Retornando à trama, somente depois, com a prisão de Henderson, temos o surgimento de nossa verdadeira protagonista: Carol “Kansas” Richman. É ela quem, não apenas toma as dores de seu chefe, após vê-lo ser encarcerado e condenado, mas quem se apossa do protagonismo da história, confrontando as testemunhas que omitiram a presença da mulher misteriosa de seus relatos. O que a colocará frente a frente com o verdadeiro assassino.

Foi a presença de Carol, sua atitude e resiliência em levar adiante a investigação, desafiando — aterrorizando e perseguindo — homens maiores e mais fortes, que me impediu de esquecer dessa história. Por sua atuação, pude relevar problemas como a onipresença do antagonista, que conseguiu, em uma única noite, transformar, por meio de ameaças e subornos, pessoas comuns em atores profissionais, capazes de enganar policiais com extrema facilidade. A direção também tem poucos momentos de inspiração. Destaco uma cena na qual Henderson recebe uma visita de Carol na prisão. No momento de sua partida, uma porta composta por grades é aberta entre os dois, mantendo-se assim durante a despedida, tanto como barreira, quanto como caminho para o mundo exterior. Uma metáfora óbvia, mas funcional, não apenas do obstáculo entre os dois, mas da “escapatória” próxima e ainda possível.

A cinematografia segue a cartilha noir, com luzes e sombras bem marcadas. Por vezes, investe em metáforas esperadas, como um spot de luz sob as mãos do assassino, ou um filtro difuso, dando um caráter angelical, e até fantasmagórico, à Carol. Marcas perdoáveis de uma época, eu suponho.

De outra época poderiam ser também incluídas certas representações problemáticas da trama, como a da mulher irremediavelmente desamparada pela perda amorosa — fato melhor discutido adiante —, enquanto os homens podem seguir em frente para novos relacionamentos. O mesmo poderia ser dito da motivação de Carol, mais sustentada no amor que sentia por seu chefe, do que em sua sede por justiça… mas talvez eu esteja sendo anacrônico ou preciosista.

Outra questão a ser destacada é a curiosa participação da atriz e cantora brasileira Aurora Miranda, irmã da Carmem Miranda, que vive “Estela Monteiro” na película. A princípio, pelo nome mais aproximado de nossos amigos de língua hispânica, julgava que a personagem fosse fruto de alguma confusão, pois, apesar do nome, ela falava algumas frases em português. Somente depois, com a leitura do livro, pude compreender que a personagem havia sido inicialmente idealizada como nascida em Buenos Aires. A transposição para o cinema, de forma curiosa, conservou seu nome “hispânico”, enquanto mudava sua nacionalidade. Isso, é claro, considerando que Robert Siodmak, o diretor do filme, soubesse que Aurora estaria a falar português em lugar de espanhol. Seja qual for o caso, mais um dos males de uma época, suponho.

O Brasil também aparece no filme como destino para o qual Jack Marlow, o amigo de Henderson, e vilão da trama, interpretado por Franchot Tone, teria viajado para trabalhar como arquiteto. Outra inclusão da adaptação, pois, no livro, ele trabalharia em uma empresa petrolífera em um país não especificado.

A presença brasileira no filme, que motivou minha primeira incursão no romance, acabou por revelar aspectos inusitados da história, levando-me a estender a análise que visava. Percebi que ao me aprofundar na diferença entre as duas obras, para refletir sobre suas causas e consequências, poderia alcançar um novo olhar sobre o filme e aquilo que nele tanto havia me marcado. Por isso mergulharemos ainda mais profundamente. Prenda a respiração.

Um breve olhar sobre o romance de Cornell Woollrich

Um primeiro aspecto que quero abordar no romance é a presença latina que ele contém, algo que, após ler um pouco sobre o autor, não seria de se estranhar, pois ele teria vivido parte da infância no México. Talvez por isso, o Brasil não seja citado no livro, ficando o demérito (como veremos a seguir) para nossos vizinhos argentinos. Ainda que o nosso país não seja diretamente citado na obra, no entanto, ele revela-se na cantora Stela Monteiro, seja em sua canção “chica chica bum bum” —  em uma referência clara ao “chica chica boom” de Carmem Miranda —, seja pelo chapéu que, na obra, não é preto, mas laranja e similar à uma abóbora — tão chamativo quanto as frutas e flores de Carmem.

Vale destacar que, se a infância na América do Sul acabou por ser refletida no romance, esse reflexo muito pouco trouxe de positivo. Além de mencionar mosquitos e referir-se à comida de forma pejorativa, a cerveja teria “gosto de querosene” e os cigarros seriam uma mistura de “pólvora e inseticida”. A própria Stela Monteiro também recebe a sua parcela de depreciação. A cantora goza de uma personalidade tão ou mais “complicada” do que a presente no filme, tem sua música ridicularizada e traz consigo o mais infame exemplo de um estereótipo latino: um macaco de estimação!

Outras questões poderiam ser analisadas, como a seguinte fala de Henderson, ao tentar descrever nossa “dama fantasma” para os policiais: “”She had on a skirt, so she was a girl, and she wasn’t using crutches, so she was able- bodied. Those were the only two things I cared about” (Ela estava de saia, então ela era uma garota, e ela não usava muletas, então ela era fisicamente capaz. Essas eram as únicas duas coisas com que me importavam). Em lugar de continuar a enumerar esses problemas, contudo, vale dizer que, muito mais do que a presença de “questões discutíveis”,  e até esperadas, no livro, o que mais me incomodou foi uma ausência: o protagonismo de Carol.

Na obra literária, sua participação na investigação é bem menor e, além disso, orquestrada pelo detetive Burgess, tirando grande parte de sua iniciativa. No livro, foi Jack Marlow — até então, apenas um antigo amigo de Henderson que aparece em seu socorro — quem se candidatou para auxiliar na investigação, ocupando a maior parte das páginas. Essa escolha torna a sua revelação como verdadeiro assassino ainda mais surpreendente, mas, ao menos para mim, não tanto quanto foi a decisão do filme de abdicar dessa reviravolta para dar o protagonismo da história à Carol.

Essa não foi, no entanto, a única grande alteração que o livro traz em relação a essa personagem. Se, no filme, Carol é uma jovem que veio do Kansas e é apaixonada pelo seu chefe, no livro é a sua amante. Pergunto-me se, para os cinéfilos de 1940, fosse difícil aceitar uma amante como protagonista de um filme, mesmo sendo um filme noir. Vale destacar que Cornell tenha tentado isentá-la de qualquer “culpa” na obra, ao descrever que ela teria iniciado sua relação antes de saber que o alvo de sua afeição era um homem casado. Henderson, por sua vez, teve o peso de suas ações “aliviadas” pela demonização de sua esposa. Nada surpreendente.

Outra alteração podemos ver na própria personagem Fay Helm, nossa “dama fantasma”. Enquanto, no filme, temos uma viúva que padece de algum sofrimento mental devido a perda do marido, no livro, ela permanece casada, o que tornaria seu passeio noturno com Henderson passível de maior questionamento por parte do público conservador da época. Mais uma alteração para tornar a história mais palatável?

Ainda que não seja uma tarefa difícil inferir que uma alteração “moralista” tenha sido realizada na personagem Carol, visando que pudesse ocupar um lugar de maior destaque na trama sem afastar o público, ainda poderíamos refletir sobre o porquê de ela ter sido escolhida para tomar as rédeas da história. Reformulando a questão, se o público era demasiado sensível ao ponto de requerer as alterações descritas, não seria também para aceitar uma mudança no protagonismo da trama de Jack Marlow para Carol? A explicação para isso pode estar no turbulento momento pelo qual os EUA passavam.

Esforço de guerra e empoderamento feminino

É importante destacar que, apesar de a diferença entre a publicação da obra e a produção do filme ser de apenas dois anos, muita coisa havia acontecido no plano político e econômico nos EUA. O ano de 1942 marca a participação efetiva do país na Segunda Guerra Mundial. Além do envio de homens para os campos de batalha, houve a convocação de mulheres para cooperação no esforço de guerra, atuando na construção de aviões, como enfermeiras e até pilotos. Segundo Santana (2016), até seis milhões de mulheres teriam ingressado na força de trabalho entre 1942 e 1945. Uma revolução que multiplicou suas rendas, permitindo a elas transpor as barreiras do espaço privado para o público, anteriormente dominado pelos homens. O momento deu-lhes poder.

A transformação cultural pôde ser percebida até mesmo no vestuário das mulheres, que agora utilizavam “calças socialmente pela primeira vez” (SANTANA, 2016) — para o desespero de Henderson, eu suponho. Não é de se impressionar que Carol, na adaptação de 1944, ao ser instigada pelo inspetor Burgess a retornar para o Kansas — como se ela fosse uma Dorot perdida no mundo mágico de Oz —  responda: “I’m staying here. I have things to do” (Eu ficarei aqui. Eu tenho coisas a fazer). Logo em seguida, quando o inspetor comenta sobre o homem que ela perseguiu e aterrorizou, Carol responde: “I had to do something” (eu tinha que fazer alguma coisa). O empoderamento feminino que ascendia nos EUA, ainda que temporário, já deixava as suas marcas nas concepções em geral sobre as mulheres, assim como nelas próprias, permitindo um distanciamento mais seguro dos “quatro pilares da feminilidade da época”, a saber: “piedade, castidade, domesticidade e subserviência” (SANTANA, 2016). Não é por menos que a partir dali pudemos acompanhar uma ascensão das  femme fatales no cinema.

O mesmo momento histórico turbulento que cooperou para essa ascensão, refletiu-se de forma um tanto dúbia na personagem de Carol. Ao mesmo tempo em que o pilar da “castidade” era parcialmente preservado — quando a tornaram apenas uma secretária dedicada —, ao assumir as rédeas da trama, ela pôde passar por cima de todos os outros de uma forma singular.

Se não ficou evidente como as transformações sociais poderiam influenciar as mudanças entre a Carol literária e sua adaptação, assim como na ascensão das femme fatales do cinema, podemos buscar um paralelo em outra obra/época: a peça teatral La Dama Duende, de Calderón de la Barca, de 1629, a qual foi nomeada em língua inglesa com o mesmo nome da obra de Cornell: “Phantom Lady”.

A “Dama Fantasma” de Calderón de La barca.

Poderia citar três paralelos entre a obra “La Dama Duende” e ao filme/livro que analisamos. Em primeiro lugar, na obra de La Barca, também temos uma mulher, Doña Angela, que é confundida com um uma espécie de fantasma, confusão relacionada à sua condição de viúva — ainda que a confusão seja incitada pelo “bobo” da peça. A personagem em questão havia sido aprisionada pelos irmãos, que temiam que ela pudesse vir a desonrá-los, pois, segundo Fernando Gómez (2020), a viúva ocuparia, para a sociedade espanhola do século dezessete, um lugar dúbio, não se encaixando no conceito de casada ou “donzela”. Uma mulher não ligada a um homem, mas conhecedora dos “prazeres da carne”, correria maior perigo de cometer certos “delitos amorosos”, podendo “macular” o nome de sua família.

Além da viuvez atrelada a condição de fantasma, o segundo paralelo que podemos encontrar entre as obras  é que o “fantasma” de La Barca também é marcado por usar um distintivo adereço em sua cabeça, o que o faz ser nomeado pela personagem Cosme como um “duende capuchinho”, isso porque,  aos olhos do “bobo”, ela “parecia um pequeno frade com um pequeno capuz” (GOMEZ, P.170, 2020). Confusão criada com a sua vestimenta característica de viúva.

O terceiro paralelo está relacionado não com as duas obras, mas com o momento pelo qual a sociedade espanhola passava durante a escrita da peça. Segundo  Fernando Gómez (2020), o papel da mulher na sociedade estaria em discussão pelas transformações ocorridas devido à reforma protestante. Antigos valores começaram a ser derrubados, não apenas sobre as viúvas, mas sobre todas as mulheres e assim “novas imagens monstruosas surgem; imagens que, em suas próprias formas distorcidas e assustadoras, manifestam e, portanto, refletem, o medo e a ansiedade que infundem esses momentos precários de transição” Fernando Gómez (2020).

Tanto na Espanha do século dezessete, quanto nos anos quarenta dos EUA, mudanças culturais puseram em debate o papel da mulher na sociedade. A liberdade conquistada por elas pode ter sido um impulsionador para que a obra de Cornell fosse adaptada dois anos depois, assim como gerado transformações já descritas na narrativa e personagens. Mais uma vez, o medo e a ansiedade de um povo traziam à tona os seus fantasmas.

Voltando a relação entre o filme e seu livro, ainda que vejamos diferenças entre as duas versões da história causadas pelas transformações sociais, a sociedade não muda tão rápido e, por isso, muito do que havia de problemático no livro se mantém — além de novos problemas surgirem.

A decisão de transformar, no filme, Fay Helm em uma viúva que perdeu sua sanidade é sintomática. Nossa “dama fantasma” dos anos quarenta é mais uma mulher confinada até a morte pelo laço do matrimônio, uma visão não muito distinta da que se tinha no século dezessete, quando julgava-se que “Uma vez que a esposa perdeu o marido, ela mesma deveria viver como se também tivesse morrido” (GOMEZ, 2020). Não podemos ignorar, no entanto, que no romance de Cornell, a loucura da “mulher fantasma” também é uma marca de atraso e preconceito. O que a Fay Helm teria feito para justificar seu confinamento em uma instituição psiquiátrica? A resposta é quase risível: passado noites fora de casa, hospedado-se sozinha em hotéis e, pasmem, teria sido encontrada, mais uma vez sozinha, em um banco de praça, durante o nascer do sol. Evidentes sinais de loucura, quem discordaria?

Fica evidente que, tal como um fantasma/simulacro, Ann Terry, seja no livro ou no filme, não se encaixaria na representação de mulher idealizada nos anos quarenta, modelo vinculado aos pilares da “feminilidade” já citados. Se tomássemos tais pilares como parâmetros, poderíamos nomear outras candidatas ao posto de “mulheres loucas” — ou fantasmas — nos filmes, pois, retornando à tradição grega, o que seria um “fantasma” se não uma representação que não se adeque a um modelo “ideal”? Vamos passar brevemente por essa questão.

Glorifiquemos o reino dos fantasmas

Na obra de Deleuze, podemos compreender melhor, tanto a relevância do conceito grego de fantasma/simulacro para o nosso filme, como para a nossa cultura em geral. Segundo o filósofo, teríamos herdado o modus operandi do pensamento platônico. Mas que legado seria esse? Para Platão, o mundo sensível/material seria apenas uma cópia de outro mundo, o qual seria este sim o verdadeiro — a velha oposição entre o mundo sensível e o mundo das ideias. Dentro dessa concepção, uma arte que reproduzisse um objeto de mundo material, como a pintura de uma paisagem, por exemplo, na “hierarquia das imagens”, não passaria de mera “cópia de uma cópia” — a primeira cópia seria a própria paisagem. E onde entra o simulacro/fantasma nessa história? Como o tipo de “representação ruim”, aquela que não tem vínculo com qualquer modelo precedente, seja ele “a cópia”, seja o modelo ideal, tornando-se unicamente marcado, ou maculado, pela “diferença”. Esse é o legado de Platão: a obsessão pelo que é igual — a um dado ideal — e a rejeição pela diferença. Por isso Deleuze propôs uma ruptura com esse pensamento chamada de “reversão ao platonismo”, que nada mais seria do que “recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos reflexos” (DELEUZE, 2006, p.106, apud REZINO; SOUZA, 2018. grifo nosso).

Rejeitar a ideia de uma superioridade de um dado “modelo ideal” sobre o que é diferente, novo e “estranho” é um passo para aceitar a diversidade, tão suprimida, apagada e aprisionada historicamente. Por isso poderíamos dizer que:

(…) a filosofia criadora e que se põe a erigir um pensamento da Diferença deve ter como baluarte não a boa cópia, mas a imagem sem modelo. Sendo o simulacro, por fim, entendido não como o avesso da filosofia, mas sim como fomentador de pensamentos outros (REZINO; SOUZA, 2018)

Acredito que o cinema possa fazer o mesmo. Nada mais fomentador de “pensamentos outros” do que obras diferentes, confrontadoras, não ideais.

Últimas palavras

Fica claro, após o nosso não tão breve mergulho, porque jamais pude esquecer a fatídica cena protagonizada por Carol no bar. Ela trazia algo de diferente. Carol, na medida em que a história avança, distancia-se mais e mais dos pilares da mulher ideal que havia visto em outras obras — ou do que esperava para um filme dos anos quarenta. Ela era cruel, em lugar de piedosa; provocante, apesar da tentativa de mantê-la “casta”; dominava diferentes espaços públicos, à revelia daquelas que queriam seu retorno ao Kansas. E, além de tudo, era ela quem conduzia a história. A diferença não se curva aos modelos idealizados, deixa marcas, transforma sociedades dentro e fora das telas. É pela diferença que ela trazia consigo que posso, pelo fantasma da memória, continuar a ser assombrado por esse filme, mesmo sem ignorar os seus muitos defeitos.

Referências:

GÓMEZ, Fernando. Passing through Walls, Transgressing Social Norms: superstitions about ghosts and women in calderón de la barca’s la dama duende. Hispanic Issues On Line, Minneapolis, v. 25, p. 167-190, 2020. Anual. Disponível em: https://conservancy.umn.edu/bitstream/handle/11299/212990/hiol_25_09_gomez.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 07 out. 2022.

REZINO, Larissa Farias; SOUZA, Pedro Fernandez de. Em diálogo Gilles Deleuze e Platão. Idéias, [S.L.], v. 9, n. 2, p. 209-232, 14 dez. 2018. Universidade Estadual de Campinas. http://dx.doi.org/10.20396/ideias.v9i2.8655424.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Uniamp, 2007.

SANTANA, María Cristina. From Empowerment to Domesticity: the case of rosie the riveter and the wwii campaign. The Case of Rosie the Riveter and the WWII Campaign. 2016. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fsoc.2016.00016/full. Acesso em: 07 out. 2022.

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Texto escrito por:

Daniel de Assis

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