Crítica: Matrix Resurrections - Cinem(ação)
Matrix Resurrections - cena do filme
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Crítica: Matrix Resurrections

Matrix Resurrections: Lana Wachowski abraça a metalinguagem como recurso final para quebrar a matrix

Sinopse: Se passando 20 anos após os acontecimentos de de Matrix Revolutions, Neo vive uma vida aparentemente comum sob sua identidade original como Thomas A. Anderson em São Francisco, Califórnia, com um terapeuta que lhe prescreve pílulas azuis para neutralizar as coisas estranhas e não naturais que ele ocasionalmente vislumbra em sua mente. Ele também conhece uma mulher que parece ser Trinity (Carrie Anne-Moss), mas nenhum deles se reconhece. No entanto, quando uma nova versão de Morpheus oferece a ele a pílula vermelha e reabre sua mente para o mundo da Matrix, que se tornou mais seguro e perigoso nos anos desde a infecção de Smith, Neo volta a se juntar a um grupo de rebeldes para lutar contra um novo e maois perigoso inimigo e livrar todos da Matrix novamente.
Direção: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II

Você assiste o novo Caça-Fantasmas em VOD. O filme traz de volta o elenco dos filmes originais. Consciente de que a nostalgia pela nostalgia o tornaria apelativo, “menos digno”, o filme possui alguns atores jovens, da nova geração, pertencentes a uma série popular querida pelo público, para contar uma história de passagem de bastão. Alguns velhos inimigos podem retornar. A obra equilibra o saudosismo na medida certa. Você pode se divertir. Pode se emocionar ao ouvir o tema clássico, junto do retorno de seus heróis de infância. O filme acaba e você vai ao cinema assistir Homem-Aranha – Sem Volta Para Casa. Te disseram que era um filmão. Filme feito para o fã. Todo mundo gritou no cinema quando os heróis e vilões dos filmes antigos, com os quais você cresceu, retornaram. Achava que o filme poderia cair na nostalgia, mas ele consegue equilibrar perfeitamente o fanservice com a história principal de Tom Holland. O filme consegue justificá-los de maneira um tanto forçada, mas acaba funcionando. É como uma passagem de bastão. Diverte. Você pode se emocionar. Era importante para ti na juventude. As máquinas que controlam a Matrix sempre foram boas em fazer a farsa parecer autêntica sem que a gente perceba.

Matrix Resurrections, primeiro filme da franquia em muitos anos, conta com o retorno de Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss). Como os dois retornaram à vida após os eventos de Revolutions não importa muito. Você espera que amarrem bem, e a nostalgia não soe tão forçada. O importante é acreditar na farsa. Você está assistindo ao filme, e o novo Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II) sai de um box de banheiro, após repetir uma frase icônica do primeiro filme, dita por Lawrence Fishburne. A história se repete. “Desta vez, é tragédia ou farsa?”, pergunta o profeta para Reeves; Pergunta a diretora Lana Wachowski (que retorna desta vez sem a companhia de sua irmã Lily) para nós.

O cinema de Lilly e Lana Wachowski é marcado por uma honestidade narrativa, um comprometimento com a história sendo contada à prova de sarcasmos e piadas autoconscientes. Isso ficou mais evidente em sua filmografia dos anos 2000/2010, com filmes como Speed Racer (2009) e O Destino de Júpiter (2015). Enquanto tentávamos entender para onde o cinema de gênero caminhava nessas épocas, em retrospecto fica clara a aversão que os filmes daqueles tempos possuíam com a mitologia de seus próprios universos. Cinismo e autoconsciência era o mote. Um personagem de visual espalhafatoso aparece em cena, e o personagem que divide a tela comentava sobre tal aspecto. Ele estava se retirando do universo no qual estava inserido e conversando, junto dos realizadores do filme, com a audiência. “Viu? Também achamos isso ridículo”. Não parece haver espaço para essa autodepreciação nos filmes das Wachowskis, abraçando a breguice, o piegas, enfim, as emoções que seus filmes pediam, sem vergonha alguma disso, nadando contra uma corrente que existe até hoje.

E isso significa muito quando nos lembramos de que em determinado momento de Speed Racer existe a quebra da quarta parede, quando personagens conversam diretamente com a audiência. Entretanto, quando esse momento acontecia, próximo ao final da adaptação do anime, existia não um comentário de autodepreciação do filme consigo mesmo, mas uma piada inocente e orgânica de uma obra que parecia testar, como o Hulk de Ang Lee (2003), os limites da linguagem como adaptação de outra mídia, um filme de experimentos. Quando acontecia aquela quebra de quarta parede, naquele filme, era como se até mesmo esse recurso estivesse sendo descoberto pelas irmãs.

Em Matrix Resurrections, Lana opera a metalinguagem ao ponto de ebulição. A trilogia de filmes de Matrix existe dentro do universo de Resurrections como um videogame, criado pelo mesmo Thomas Anderson que estrelou os “jogos”, vivido também por Reeves. O chefe do estúdio no qual Anderson trabalha diz para ele que a Warner Bros quer fazer um novo jogo da franquia, e seguiria em frente com ou sem o seu criador. Um personagem do filme antigo retorna apenas para comentar a ação que assistimos. Presenciamos o brainstorm da equipe desenvolvedora do novo jogo. Discutem os méritos culturais de Matrix. Discutem a fanbase, citam o “Bullet Time”, citam a filosofia antissistema da trilogia original. Seria muito fácil e até hipócrita de Lana Wachowski utilizar da metalinguagem e ironia à qual tanto pareceu aversa – em busca de suas construções e do reforço de mitologias – apenas para justificar a existência de seu filme. Um comentário parecido existe em Space Jam 2, um filme que se apropriava desse discurso farsesco para amenizar o fato de que era exatamente o que parecia criticar, como uma mea culpa. Era uma piada interna em que a própria Warner parece fazer essa autoanálise: “sabemos que isso é ruim, mas fazemos mesmo assim. E te jogamos uma isca de nostalgia de volta. E vocês engolem. E vocês riem. E a máquina ganha”. Ciente de que a “máquina” se apropriou até dessa ferramenta, Wachowski opera no limite. Precisa descontruir a mitologia que criou para comentar sobre os tempos atuais. Tragédia ou Farsa?

Até o Matrix original, outrora um exemplo de filme antissistema e manipulação de massas, grito para que uma geração “acordasse” (como diz o título da música do Rage Against The Machine) se tornou arma para a geração dos “redpillados” nos tempos atuais. A diretora então pega sua cria e a desmonta. O vilão do filme (Neil Patrick Harris) fala sobre como o sofrimento de Neo e Trinity é o motor para funcionamento da nova Matrix (afinal o filme não existe se não houver sofrimento, se não tiver uma jornada transformadora dos personagens). A nova Matrix aprendeu com os erros do passado, portanto o filme que assistimos não possui mais o tingimento esverdeado que escancarava para nós quando os personagens estavam dentro da Matrix. As cenas em slow-motion características da série não são proeminentes e nem mesmo a coreografia da ação é tão meticulosa.

São omissões intencionais por parte de uma diretora que agora possui outras intenções, e é corajoso que Matrix Resurrections renuncie de sua identidade em prol de uma discussão maior sobre o cinema pop e como encaramos os mitos de outrora, muitas vezes alicerces definidores culturais de toda uma geração. Matrix mudou o cinema de ação na virada do século, e suas influências na cultura pop, já mastigadas, massificadas e utilizadas como algoritmo banalizado da Matrix, devem ser renegadas. Porque o comentário autoconsciente, para se tornar de fato discussão, não pode se restringir só ao texto, nessa ideia de combate contra o próprio sistema de filmes no qual este filme se insere. É uma decisão corajosa, já que a diretora coloca o próprio valor de entretenimento da própria obra em cheque para validar essa discussão.

É por isso que dentro dessa noção da anarquia contra a própria forma de seu filme, Wachowski devote esforços nada irônicos ao romance de Neo e Trinity, reféns da Matrix com ou sem a diretora, fadados a serem ressuscitados para a alegria do fã nostálgico, reféns do sofrimento de serem manipulados. Lana pretende lutar contra essa máquina imparável de Hollywood da forma que pode. A ressureição pode ser profana e “extra-filme”, mas a mitificação de Neo e Trinity ainda é sagrada para a diretora. A fé na jornada dos dois deve ser consumada de forma honesta. Por isso, a diretora pega a revolta contra o sistema e a impõe sobre seus protagonistas e a história de romance que retrata com um comprometimento dramático evidente.

É talvez o filme mais “anti-marvel” e antissistema do cinema recente: a forma mais insidiosa de comentar sobre a indústria, que utiliza a metalinguagem não como forma de validar a narrativa farsesca que promove, mas para tentar reverter essa própria farsa, renegando sua própria identidade no processo. Tragédia ou farsa? Por que não os dois? Wachowski desconstrói a farsa para transformá-la em tragédia ao se devotar incondicionalmente à jornada de Neo e Trinity contra a Matrix, numa resolução de entendimento: se não é possível escapar de dentro da Matrix, por que não a mudar de dentro para fora? Trinity agradece ao vilão do filme por essa oportunidade, uma frase partilhada por Lana Wachowski.

  • Nota
4

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