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Crítica: Ferrari

Ferrari
Direção: Michael Mann
Roteiro: Michael Mann, Troy Kennedy Martin
Elenco: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Gabriel Leone, Daniela Piperno, Sarah Gordon, Patrick Dempsey, Jack O’Connell.
Sinopse: Em 1957, Enzo Ferrari está sofrendo o luto pela morte do seu filho, um casamento em crise e as preparações de uma corrida que vai mudar o destino da sua empresa.

(leia a outra crítica do filme aqui)

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“We all know is our deadly passion, our terrible joy”

John Lily, poeta e dramaturgo inglês, uma vez escreveu: “tudo vale no amor e na guerra” (all’s fair in love and war). Seria presunçoso da minha parte inferir com irredutível certeza o que o poeta queria dizer com a frase que acabou virando uma máxima, mas imagino que se ligava bem menos à uma ideia romântica, contexto onde esta se tornou mais popular, e mais à uma ideia trágica, onde tanto no amor quanto na guerra não é possível o fairplay, o jogo justo. Em outras palavras, em ambas arenas, regras morais e éticas não se aplicam, pois quando há paixão as linhas entre razão e emoção se tornam tênues.

Em Ferrari, apaixonar-se implica em perigo, e nesse cenário a morte, por sua vez, não é uma ideia remota, e sim parte do cotidiano. Armas de fogo, carros como armas tão mortais o quanto, mausoléus, acidentes e cartas de despedida são ideias colocadas em tela por Michael Mann durante o filme que remetem à inevitabilidade da morte como consequência de uma paixão mortal, sua alegria terrível. Em meio a um universo de cinebiografias hollywoodianas completamente desinteressantes e protocolares, Mann sabiamente recusa a tentação de perseguir o impossível esgotamento da vida do cinebiografado e, ao invés disso, vai ater-se a uma única ideia que irá basear toda a obra, incluindo seu recorte temporal específico: a morte.

Se em sua vida pessoal Enzo Ferrari lidava com uma paixão potencialmente perigosa, sua vida profissional não era muito diferente. O fio condutor que permite a Mann alternar entre o melodrama e o cinema de ação, em Ferrari, é essencialmente a sensação ad eternum de perigo iminente em ambas esferas da sua vida. É importante dizer portanto que o sentido da morte aqui não é apenas literal, no que se refere ao estado biológico da ausência de vida, e sim muito mais amplo. Em Ferrari, o diretor desenvolve mais um estudo sobre a masculinidade em sua filmografia, tendo a morte também como a possibilidade do fracasso, o deixar de existir, a falência.

A possibilidade do fim do matrimônio, assim como do fim da empresa, nesse caso, são momentos retratados pela câmera com tanta curiosidade e apreensão quanto curvas fechadas em alta velocidade em um imenso desfiladeiro. A grandiosidade de todas as imagens e a sua significação sempre pertinente não negam uma constante remissão direta ao cinema clássico-narrativo, onde a câmera que caminha sem muitas interrupções sobre os corpos e sobre o espaço é a mesma que dialoga com a montagem contínua e que ultimamente medita, mais calmamente do que muitos fãs de Fórmula 1 poderiam imaginar, sobre a figura de um homem controverso e inegavelmente apaixonado – em todos os sentidos.

O filme tem momentos muito memoráveis, como a contagem do tempo da corrida que apreensivamente alterna-se à uma missa na igreja (talvez uma referência a outro exímio filme símbolo da ideia de masculinidade, O Poderoso Chefão) e a cena da ópera que nesse sentido me lembra uma quantidade ainda maior de filmes que vão de Cidade dos Sonhos (2000) a Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019) no que se refere ao poder da performance no palco de proporcionar aos personagens o acesso a sentimentos muito íntimos destes, os quais ficam ainda mais claros neste filme diante do uso pontual (e magnífico em termos de construção de roteiro) dos flashbacks.

Ainda, é essencial destacar a personagem de Penélope Cruz que mesmo diante de tantas grandes atuações, foi a que mais se destacou nesse filme. Laura Ferrari é uma personagem muito complexa e que ao mesmo tempo não é nada nova dentro do cinema clássico italiano: uma mulher forte que se comporta “como homem” dentro do poder das suas convicções e da força da sua palavra. Ela é uma verdadeira matriarca, uma força da natureza que impõe ao personagem de Adam Driver as regras do jogo, mesmo quando este tem certeza que está no comando. O brasileiro Gabriel Leone também está muito bem e todos os atores, importante dizer isso, parecem ter noção absoluta de que a artificialidade do sotaque é parte do que faz o filme.

Seria irrazoável pedir que uma obra estadunidense com atores majoritariamente americanos, assim como foi House of Gucci para citar um exemplo recente, tivessem um sotaque italiano perfeito. Acredito que a ideia, a qual caminha em direção à uma fidelidade impraticável, além de boba, não tem interferência alguma na qualidade do filme. Ferrari tem muitas qualidades referentes ao trabalho de som, fotografia, atuações, roteiro, e tantos outros aspectos, essencialmente no que tudo isso significa enquanto abordagem para o cinema biográfico contemporâneo, que bater na tecla do sotaque ou da suposta burocracia (ao meu ver simplesmente confundida por muitos com o estilo clássico de filmar), me parece um verdadeiro desperdício. Assim como a discussão sobre o CGI, cujo uso aparece de forma brutal e onde, mesmo nitidamente farsesco, não tem seu impacto diminuído nem por um segundo naquilo que pretende representar. O efeito dramático está presente, não se pode negar.

O que eu percebo, assim, é um filme que se utiliza de todos os aspectos do cinema mais autoral de Michael Mann em direção à uma abordagem mais clássica em sua construção, onde o diretor utiliza o melodrama e o cinema de gênero como ideias complementares, um maximizando o efeito do outro, aproximando-os pela pulsão de morte que paira pelo ar. Nessa equação, todos os seus filmes, pelo menos todos que vi até hoje, são exímios em unir o cinema de gênero de alto nível, com estilo, explorando as emoções mais viscerais que possam surgir a partir de suas convenções, à uma abordagem mais dramática de nível psicológico dos dilemas enfrentados por estes personagens, configurando grandiosos estudos cinematográficos sobre a masculinidade.

Inclusive, acredito que uma das características que mais amo no cinema do diretor, seja em Heat, Collateral, O Informante ou Ferrari, é a forma em que todos os filmes me atraem inicialmente pelos seus protagonistas: homens complicados, moralmente questionáveis e inegavelmente presos ao seu próprio (e mortal) ofício. Diante dessa ideia, seria impossível que eu não gostasse de um filme como este, onde gêneros marcados pelas suas convenções potencializam, cada um ao seu modo, os inegáveis paralelos que ambas esferas da vida de Enzo Ferrari proporcionam. A maestria com que Mann concretiza seu filme depois de 20 anos exclama cuidado, um rigor formal exuberante, cujos sentimentos viscerais transbordam em tela: da morte ao sexo, da traição ao perigo. Tudo o que fez do filme, pelo menos para mim, um dos melhores do ano passado e talvez um dos melhores da (brilhante) carreira do diretor.

  • Nota
4

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