Crítica: Amanhecer - 45ª Mostra de São Paulo - Cinem(ação)
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Crítica: Amanhecer – 45ª Mostra de São Paulo

Amanhecer – Ficha técnica:
Direção: Dalibor Matanić
Roteiro: Dalibor Matanić
Nacionalidade e Lançamento: Croácia, Itália, 2020 (45ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Num futuro próximo, a sociedade sofre uma drástica transformação política. Enquanto os vizinhos fogem do radicalismo vigente, Matija e sua família são confrontados a uma tragédia não solucionada. Enquanto perde a fé e tem dificuldades para encontrar a si mesmo, o amanhecer na região revela que a única maneira de Matija lidar com seu trauma e com a maldade à sua volta é enfrentá-los diretamente.
Elenco: Kresimir Mikic, Tihana Lazovic, Maks Kleoncic, Lara Vladovic, Marco Mandic.

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A sinopse de Amanhecer (Zora) descreve-o como um filme que se passa “num futuro próximo”, onde “a sociedade sofreu uma drástica transformação política” e os habitantes da região onde vivem “fogem do radicalismo vigente”. Ainda que possam ser extraídas percepções alegóricas da migração das figuras vistas aqui, não existem, no filme em si, indícios verbais ou visuais muito perceptíveis do teor político insinuado na descrição. É nos dito apenas que há algo vindo em direção a essa região rural e que os personagens expressam pesar em se mudar para a cidade. Nos momentos finais de Amanhecer, se abraça uma loucura de tons alegóricos, mas o tom hermético permanece. Pouco nos é oferecido para que possamos fazer uma interpretação mais direta.

Se essa diferença de como a obra é descrita e o que se imprime no filme poderia representar alguma incompetência na transmissão de suas “mensagens principais”, o filme escrito e dirigido por Dalibor Matanić se eleva por nunca falhar em prender a atenção do espectador, cena após cena, numa narrativa misteriosa e inquietante, em que a relação dos personagens que compõem a família acompanhada aqui – assim como a forma críptica com a qual reagem aos eventos que transcorrem durante a projeção – é o foco.

E críptico parece mesmo ser a palavra que define a maior parte de Amanhecer. O filme se inicia já de uma forma intrigante: Ika (Tihana Lazovic), nua, aguarda deitada e inexpressiva por seu marido, o protagonista Matija (Kresimir Mikic) para fazer sexo. Na primeira penetração, uma lágrima escorre de seu rosto. Os filhos do casal, a esperta Kaja (Lara Vladovic), e Nikola (Maks Kleoncic), observam os pais; curiosos, rindo e alternando nas espiadas. A família ainda sofre pelo desaparecimento do filho caçula, nunca encontrado. O patriarca opta por vender a casa e se mudar para a cidade, algo que é ressentido por todos na casa e até mesmo pelo dono do bar frequentado por Matija. Quando um misterioso forasteiro (Marko Mandic), também chamado Matija, começa a construir uma casa idêntica à da família protagonista, a tensão se instaura ainda mais.

A presença de Matija nº 2, a forma como ela se desdobra na vida daquela família e, principalmente, como “Matija nº 1” reage a esses desdobramentos evocam claramente obras como O Homem Duplicado, de José Saramago, e O Duplo, de Fiódor Dostoiévski. Ainda que Matija 2 não seja um sósia físico do primeiro, ele chega a emular – em cenas inquietantes – os movimentos do primeiro. O forasteiro representa o sucesso, confiança e autoestima que o protagonista almeja ter, e a progressão de eventos que eventualmente explodem em sequências de extrema estranheza transforma Amanhecer num eficaz terror psicológico, que alterna entre cenas como a de Ika na banheira, com um design de som poderoso e perturbador, e um momento particular onde a mulher dança com Matija 2, em momentos que com certeza permanecerão com o espectador por um bom tempo após a sessão. Existe uma sensação de estranheza e de um mal que está por ver que impregna toda a obra.

Existe também a impressão de que há uma força maligna, um elemento místico, manipulando a família protagonista, o que eleva a obra de um terror psicológico de alegorias e estranhezas que existem por si só, e atribui um mistério palpável para os eventos que transcorrem, como se estivéssemos presenciando de fato uma lenda de terror sobre essa estranha figura que aparece na vida daquelas pessoas.

As atuações são excelentes, com destaque para Ika de Tihana Lazovic – numa interpretação de entrega física e emocional em que se sente a degradação mental da mulher –, a garota Kaja de Lara Vladovic – responsável também por alguns dos momentos mais cômicos da obra e por sequências de dança estranhas e magnéticas –, e o Matija 2 de Marko Mandic – numa interpretação que oscila entre um estoicismo de falsa cordialidade e o puro histrionismo, que o transforma numa figura aterrorizante, intimidadora e imprevisível.

A escalação dessas tensões e estranhezas culmina nas já citadas sequências finais desconcertantes em suas aleatoriedades e loucuras visuais. E, se o lado alegórico dos absurdos sente-se um pouco excessivo na disrupção que faz de uma narrativa que era até então sem muitos desses arroubos mais evidentes, ele acontece quando já se está totalmente investido na jornada daqueles personagens. A catarse dessas jornadas é consumada de forma muito potente independente da situação em que se encontram, e ganha essa força muito pelo poder do constante movimento. Se as mensagens do filme podem soar desconjuntadas por um tom críptico excessivo, é nessas catarses da jornada de seus personagens, como na batalha de dança envolvendo Kaja, que o estranho Amanhecer alcança uma consumação muito digna desses conflitos.

  • Nota
4

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