Crítica: A Mão do Demônio - Cinem(ação) - críticas e artigos
A Mão do Demônio - cena do filme- ator Semyon Serzin
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Crítica: A Mão do Demônio

O arquiteto Andrey (Semyon Serzin) vai ao apartamento da misteriosa Ved’ma (Aleksandra Revenko) em busca de ajuda. A mulher é uma espécie de terapeuta psíquica que utiliza cogumelos para “ajudar” seus pacientes. O que Andrey procura é apagar uma memória, mas não de sua mente. Ele quer apagar um incidente traumático da cabeça de sua esposa, a musicista Olya (Marina Vasileva): o casal foi vítima de uma invasão à sua casa, na qual Olya sofreu uma tentativa de estupro e acabou sofrendo um aborto espontâneo.  Através de seus cogumelos, Ved’ma concede o desejo ao arquiteto, mas tudo tem um preço.

O terror russo A Mão do Demônio é cheio de surpresas: quem está desatento e vê o pôster do filme imagina um terror convencional de possessão, aos moldes de um cinema comercial norte-americano. O próprio título no Brasil nos leva por esse caminho. Na cena de abertura, justamente de “assombração”, uma mulher aterrorizada se esconde de uma figura fantasmagórica que aparece em cena com um zoom-in “grosseiro”, o que já nos faz pensar que veremos justamente uma obra de sustos fáceis e baratos. No entanto, o desenrolar do filme revela intenções de realizar um terror mais psicológico, explorando o trauma dos protagonistas… e que eventualmente se entrega a uma psicodelia e imagens alucinógenas de neon e bruxaria, aproximando-o de uma espécie de terror italiano dos anos 70 – o que dá ao zoom-in  no início uma justificativa quando inserido no estilo de tais filmes.

A Mão do Demônio parece influenciado por obras de nomes como Dario Argento e Mario Bava, possuindo uma trilha sonora atmosférica característica, o não saber do que é real ou não, os planos abertos com zooms encontrando seus personagens nas paisagens externas, a própria questão da agressão sexual, etc. O próprio corte de cabelo de Andrey evoca a época. Uma característica particular que não é mérito de uma intenção diretor Aleksey Kazakov, mas que acabou evocando esse clima: a cópia do filme que veio para o Brasil é dublada em inglês por cima da versão russa, uma dublagem que frequentemente atribui o aspecto precário das cópias destes filmes europeus que iam para o resto do mundo na época. Um caso de intervenção extra-filme que serve de demérito por enfraquecer a atuação dos atores originais, mas que curiosamente o aproxima não intencionalmente do tipo de produção que A Mão do Demônio pretende evocar.

Os momentos e imagens psicodélicas que vemos no terceiro ato são construídos com competências e de formas sempre inventivas como no design de produção, com o apartamento de Ved’ma e seus cômodos secretos, e na direção de fotografia, que faz bom uso na exploração de tais ambientes e funciona também nas tomadas externas – tornando até momentos diurnos incômodos. Existem também bons momentos de body horror, como aquele que envolve um cavalo e é bem inventivo e perturbador no ótimo trabalho de maquiagem.  Mas até chegarmos nestes momentos, o filme, como já mencionado, pretende focar no drama psicológico vivido pelos protagonistas. E os dilemas pelos quais ambos passam são interessantes na teoria. Temos esse dilema moral um tanto quanto problemático de Andrey – apagar a memória da esposa sem que ela saiba, mesmo que venha de “boas intenções” – e temos o trauma de Olya, assombrada por visões de seus agressores. No entanto, a personagem acaba soando excessivamente como muleta narrativa para a jornada de Andrey e como ele lida com sua culpa, sendo manipulada por ele, Ved’ma e pelo próprio filme, o que acaba tirando a força não do ato de violência sexual em si, mas de sua própria jornada, o que a torna um mero fantoche.

Se houvesse um melhor equilíbrio da exploração do trauma de Olya com os de Andrey em seus dois primeiros atos, A Mão do Demônio teria melhor ritmo – e a repetição de algumas alucinações e situações eventualmente o torna um filme arrastado – até que cheguemos aos arrojados momentos do terceiro ato, genuinamente eficazes. A aleatoriedade de algumas situações, quando em choque com as intenções mais sóbrias de um drama psicológico que o filme também se propõe a abordar, enfraquece o todo, ainda que pudessem funcionar num filme que possuísse mais unidade com os diferentes tipos de filmes que ameaça se tornar, não conseguindo exatamente alcançar nenhum deles.

Assim, A Mão do Demônio revela por debaixo das aparências de “terror genérico de possessão” elementos interessantes, pretendendo emular um terror setentista de bruxaria muito particular, mas que se enfraquece pelo lado do terror psicológico e na abordagem capenga dos dramas de seus personagens. Os elementos visuais presentes em momentos pontuais e a psicodelia que abraça o terceiro ato, no entanto, demonstram a inventividade que poderia ser mais consistente no decorrer do filme.

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A Mão do Demônio está disponível na nova plataforma de streaming Cining

  • Nota
2.5

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