Crítica: O Problema de Nascer – 44ª Mostra de São Paulo
O Problema de Nascer – 44ª Mostra de São Paulo
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Crítica: O Problema de Nascer – 44ª Mostra de São Paulo

O Problema de Nascer” discute memória e solidão a partir de debates clássicos do sci-fi.

Ficha técnica:
Direção:  Sandra Wollner
Roteiro:  Sandra Wollner, Roderick Warish
Nacionalidade e Lançamento: Áustria, Alemanha, 25 de fevereiro de 2020 no Festival de Berlim (44ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Elli é uma androide e mora com um homem a quem chama de pai. Durante o dia, os dois nadam na piscina e à noite ele a coloca na cama. Ela compartilha suas memórias e qualquer outra coisa que o homem a programe para lembrar. Memórias que significam tudo para ele, mas que não dizem nada para ela.

Elenco: Lena Watson, Dominik Warta, Ingrid Burkhard, Jana McKinnon, Simon Hatzl.

A relação entre homens e androides não é novidade nenhuma na ficção científica. No entanto, as relações entre humano e máquina são apenas um dos pontos explorados nesta reflexão sobre a solidão e as memórias que nos constituem. Sandra Wollner parece mais interessada em discutir a trajetória de Elli e a maneira como a androide se adapta às diferentes circunstâncias.

No seu tempo, a trama de “O Problema de Nascer” mostra as reflexões da protagonista em uma rotina no mínimo curiosa com o homem que seria “seu pai”. No entanto, é sua relação com ele que mostra o quanto sua condição não-humana (e de não ser a verdadeira filha) permite que ele tome atitudes que evocam discussões já consagradas na ficção científica: um robô que parece humano continua sendo apenas uma máquina, livrando as pessoas de questionamentos éticos?

Em que momento a androide passa a ser humana? Suas memórias são apenas elementos incutidos pelo “dono”, ou assim que apropriadas tornam-se suas? E se ela foi ensinada a ser sensual em determinados momentos, o quanto isso seria diferente de o fazer com uma criança?

A narração repleta de pensamentos permite que o espectador desvende pouco a pouco a realidade desta protagonista. O sentimento de estranhamento e de mistério é evidenciado pela trilha sonora pontual e pelas imagens da mata, sempre presentes ao longo da trama. Vale destacar, aqui, a constante presença de animais pouco afetados pela presença de Elli, bem como seu suéter onde se lê “nature is the future”, algo que parece irônico e que adiciona ingredientes aos temas do filme.

Caso permanecesse em seu cenário inicial, “O Problema de Nascer” seria apenas uma pincelada de reflexões com a temática polêmica da sua relação com o “pai”. No entanto, o filme muda de cenário sem medo e causa uma virada na trajetória da personagem que acompanhamos, mostrando que o fato de poder ser moldada – literalmente – não impede que suas memórias anteriores se confundam entre si. É essa ruptura que permite ao espectador se confrontar com outra situação de solidão e falta que tenta ser suprida com a presença do robô. E o destino da senhora que passa a “criá-la” (criá-lo?) fornece ainda mais elementos a serem discutidos sobre memória.

O Problema de Nascer – 44ª Mostra de São Paulo

Com isso, o filme acaba por provocar incômodo em diversos pontos ao nos chocar com a dualidade entre humano e máquina. Afinal, se tantos se incomodam com a prática de incesto e pedofilia nos primeiros minutos, é porque veem Elli como ser humano – e neste ponto a cineasta merece aplausos por não mostrar nenhuma cena que sugira exploração da atriz (ao contrário, ela o faz sempre com respeito aos corpos).

Essa visão do que há de “alma” no androide nos permite sentir uma espécie de alívio ao ver que essa vida de sofrimento se acaba. Afinal, jogada na mata que tanto admirava, Elli não passará por sofrimento. Ou, talvez, o alívio esteja no fato de vermos suas entranhas de fios a nos lembrar de que, afinal, era só uma máquina.

Ainda que sempre seja triste saber que há tanta gente capaz de usar outros corpos (orgânicos ou não) apenas para satisfazer suas memórias mal resolvidas.

  • Nota
4

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