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A masculinidade fragmentada em O Farol

Uniformidade é o que a sociedade busca incansavelmente enquanto conjunto. Se é conjunto, no cerne de sua pluralidade exala um manifesto contraditório. Como posso pretender e propagar um caminho unilateral se sou feito de muitos? existem maneiras certas de se comportar, de agir e pensar, modelos pré-projetados para sentir e amar, histórias perfeitas a serem vividas e sonhos prontos e menos mortos que outros; existe uma certeza, dentre tantas outras, inabalável: a solidão é sinônimo de fracasso.

Dentre alguns ótimos nomes do cinema de terror nos últimos anos, entre eles Jordan Peele, Ari Aster – com ressalvas pessoais de ser o mais limitado dentre os citados, ainda que tenha muito potencial – e Mike Flanagan, o nome que mais me desperta curiosidade é Robert Eggers. Dirigiu A Bruxa (2016) e ficou nítido um objetivo do realizador em voltar-se para o passado de modo a estudá-lo, imprimindo uma obviedade acerca da estranheza do contexto histórico em relação à contemporaneidade. Em A Bruxa ele estuda o século XVII, mais precisamente a Nova Inglaterra, de modo a compor um quadro visceral sobre a feminilidade em meio à opressão social motivada principalmente pela crença; se a crença é o objeto de estudo, há diversas metáforas que atingem planos etéreos, de modo a salientar a discussão trágica de um momento histórico e sua mentalidade o que, por si só, desperta rejeição em outros tempos, ainda mais auxiliados pelo artifícios técnicos e que o diretor prova que sabe utilizá-los.

Tal como em A Bruxa (2016), Eggers retoma o método em O Farol, mas dessa vez troca a feminilidade pelo seu inverso. O século é o XIX, ainda que o tempo literal não seja tão relevante quanto o tempo dos personagens, pelo fato de que a composição completa soe como um registro do vácuo, onde permanece somente o homem em seu estado bruto e todos outros elementos como tempo, certezas, imposições, entre outros, simplesmente não existissem.

A razão de aspecto reduzida aos olhos modernos e uma apresentação frontal de ambos personagens – Wake (chefe) e Winlow (subalterno) -, como se fosse uma entrada, um convite a uma força indestrutível, a masculinidade intacta, pronta para o pior trabalho, inserido na pior situação: a solidão.

A ilha é a mente e o farol é o corpo. O farol quase sempre filmado em contra Contra-Plongée, aliado com a história e seus signos, se assemelha com um pênis ereto, enquanto a luz parece conhecimento e vida. O terror aqui é implícito, fortalecido pela trilha sonora constante e densa, pela fotografia e seus enquadramentos, pela atuação rústica regrada a vômitos e urina, o homem em uma projeção infernal de estar nu – e esse não seria de fato o inferno que, popularmente, tanto se teme?

O homem indestrutível se apresenta e convida. A exigência física é das mais profundas pois é um veículo entre a destruição física e a degradação psicológica. O físico é corrompido pela imposição social (trabalho) enquanto o psicológico se perde em meio à geografia, ainda que o isolamento simbolize fracasso, como citado na introdução do artigo.

O mar, as gaivotas, o farol e a casa velha, tudo parece amaldiçoado pois é assim que o personagem vê e sente, aprecio o fato de que o terror trabalhado por Robert Eggers só o é, de fato, pois assim o personagem compreende. A figura da sereia aparece em momentos oportunos, ela representa uma predadora sexual que caça com o canto, com a projeção da beleza/externo, assim como Wake o faz. Willem Dafoe trabalha com o seu talento, reforçando características físicas como o rosto forte e a voz, os seus diálogos parecem se movimentar como o mar, começam leves e adentram, se estendem e mesmo em meio à estranheza, à confusão, hipnotizam.

Robert Pattinson estrutura sua personagem, Winlow, em meio à total insânia, pois é na sua figura jovial, ainda que suja, que a história se abriga. É em seu corpo e mente que todo o drama se refugia e ameaça transbordar, ele é o homem sendo caçado pela sereia/Wake. Nesse sentido, percebo Wake como uma parte crucial do Winlow e vice-versa, os dois como um só personagem corroendo pelo desconforto da existência gasta e vã ou com medo dessa trajetória.

A tensão atinge a homoeroticidade, regrada a querosene e mel (gozo) e luz (despertar). O corpo é um palco da sensação, o prazer é indissociável do homem que, mesmo em sua posição de presa, é predador. O sexo é o ponto exato onde o psicológico dança com o físico de modo a conduzir pela insânia, atingindo o maná. É o gozo e a graça.

Prometeu furta o fogo dos deuses e entrega à humanidade, de modo a transportá-la para outra dimensão na cadeia. Fogo é a luz do conhecimento que eleva o homo sapiens a um estágio acima (?) dos outros animais. Se tirar todos elementos e imposições sociais, só sobra o homem nu, confrontando a si e, por essa atitude, enlouquecendo. O vácuo registrado em O Farol é mais terrestre do que visto em A Bruxa, mas não menos esotérico em sua afirmação ameaçadora: o masculino perfeito é fruto da ruína de não pertencer a nada, o isolamento faz desabrochar a certeza, dentre tantas dúvidas, de que o corpo não reconhece cronologia e a mente não se alimenta de silêncio.

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