Cine PE 2018 | Dia 1 – Curtas-Metragens
Além da mostra competitiva de longas-metragens diários – que agora são dois por noite devido ao adiamento decorrente da paralisação do caminhoneiros, onde pode-se sentir com mais esmero as possíveis conexões de uma temática neste Cine PE são nos curtas-metragens. Vamos às considerações:
MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS- METRAGENS PERNAMBUCANOS (MOSTRA PE)
DIA-UM (PE) – Animação -2 min.
Sinopse: A superlotação do planeta e a devastação ambiental forçam os grandes líderes a se unirem para construir as Arcas Espaciais, que são naves gigantescas que levaram os seres humanos para o espaço em busca de um novo lar, para isso uma lei determina que apenas os mais jovens podem desbravar esse novo mundo e dá continuidade a espécie, deixando assim os idosos para morrerem junto ao planeta terra que será destruído após a decolagem da última Arca Espacial.
Direção: Natália Lima
Dia-Um captura um pequeno mas singular momento de despedida, que parece ter o peso do mundo nas circunstâncias apresentadas. No entanto, engana-se quem lê a sinopse e imagina uma contextualização. O que acompanhamos nos curtos dois minutos é uma garota que lê uma carta de adeus deixada por sua vó. A eficaz trilha sonora na base dos sintetizadores insinua um tema mais melancólico de ficção científica, mas não há praticamente nada neste curta que indique os fatos citados na sinopse. Assim, sente-se em Dia- um caráter incompleto, onde o momento registrado torna-se apenas um fragmento de uma narrativa maior. O trabalho de arte é cuidadoso e a animação fluída, o que apenas torna a falta da elaboração de enredo mais decepcionante. O pequeno momento de despedida que nos é apresentado diz muito e comove, mas às vezes precisamos de um contexto.
Este apego ao mínimo é partilhado pelo protagonista do próximo curta:
O CONSERTADOR DE COISAS MIÚDAS (PE) – Animação – 10 min.
Sinopse: Sem saber o ano ou lugar onde vive, um homem passa os dias e as noites tentando consertar pequenos mecanismos depositados em centenas de prateleiras que formam as paredes do quarto minúsculo onde mora. Acredita ser impossível não ter conserto para algo que um dia já funcionou. Ele não tem pressa.
Direção: Marcos Buccini
Mais uma produção baseada em histórias em quadrinhos, O Consertador de Coisas Miúdas é dirigido por Marcos Buccini, que também lança o livro “História do Cinema de Animação em Pernambuco” neste Cine PE. A narração em terceira pessoa dita a calma de seu protagonista e da própria narrativa, que impõem a atmosfera serena e contemplativa. Seu traço, e animação, menos polidos -intencionalmente – do que Dia-Um, imprime também uma característica antiquada que apenas combina com seu protagonista, que não sabe em que ano vive, mas parece ter uma elevada noção de mundo evidenciada em seu plano final, onde a tomada aérea transforma as residências em pequenos objetos, similares aos que o protagonista conserta.
MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS- METRAGENS NACIONAIS
MARIAS (RJ) – Documentário – 18 min.
Sinopse Da proibição de usar uma roupa até o controle do que comer. Cinco histórias. Cinco mulheres que sofreram um relacionamento abusivo e quatro tiveram a coragem e a oportunidade de expor o que passaram por tanto tempo. Uma delas não teve essa chance, sua filha mais velha, que presenciou todo seu sofrimento, conta tudo o que aconteceu. Depois de tantas, quem será a próxima vítima?
Direção: Yasmim Dias
O documentário em curta-metragem emocionou o público e conquistou aplausos de pé. No doc, a realidade vem nos depoimentos despedaçantes de mulheres que sofreram relacionamentos abusivos, de forma física, emocional e mental. O depoimento da diretora Yasmim Dias, que perdeu sua mãe de tal maneira, consegue ser visceral até mesmo por seu “amadorismo” na linguagem: percebe-se que é um de seus primeiros trabalhos no áudio visual pela edição problemática, músicas excessivas e recortes de jornais sensacionalistas. Isso tudo não importa no fim das contas, já que a sensação passada é a de urgência, do desleixo técnico eclipsado pelo elemento de maior relevância. As histórias monstruosas contadas pelas corajosas mulheres – e em muitos casos, meninas – vistas aqui chocam e revoltam, e não há problema técnico que tire o valor do discurso de mulheres que tiveram seus espíritos quebrados e procuram justiça para que tais abusos nunca mais se repitam. É a urgência que transcende a linguagem do cinema.
A violência contra a mulher é explorada no outro lado do espectro:
SOB O DELÍRIO DE AGOSTO (PE) – Ficção – 20 min.
Sinopse: Severo – um homem do campo que vive o dilema entre o real e o imaginário.
Direção: Carlos Kamara& Karla Ferreira
Sob o Delírio de Agosto dialoga de forma interessante com o abuso, visto de várias formas aqui: contra a mulher, animais, amigos e também contra si mesmo. Acompanhamos o ponto de vista de um homem à beira da loucura, e o que se vê aqui é uma exploração de motivos, de sintomas, tentando justificar o presente de miséria emocional no qual ele se encontra. O abuso cometido contra a mulher aqui vem na forma da cicatriz – com uma rima visual poderosa que compara o abatimento de uma mulher com a de um gado pela violência masculina -, evidenciando uma maldição cíclica que constrói pessoas violentas. Se essa diagnosticação é perigosa por justamente tentar atribuir sentido a atos ilógicos de violência, há aqui a ligação com o terror sobrenatural e espírita. Quando se entrega ao cinema do inconsciente, do surreal, das pirações estilísticas do imaginário, Sob o Delírio de Agosto intriga, e essa narrativa da alucinação costura o próximo curta:
ABISMO (RJ) – Ficção – 15’
Sinopse: Juvenal acaba de se tornar porteiro de um edifício. Quarenta anos se vão e Juvenal continua lá como se o tempo não tivesse passado. O interfone toca e um morador o solicita para resolver algum problema. Juvenal sobe deixando a portaria por um instante vazia e chegando no apartamento, ninguém atende. Juvenal resolve voltar para seu posto mas não consegue. O elevador não o obedece e as escadas o enganam. Prisioneiro daquele edifício, Juvenal, enfim, entende o misterioso chamado.
Direção: Ivan de Angelis
É entre o surreal e o paradoxo que Abismo se encontra, misturando elementos de tensão eficientes -como os planos cada vez mais fechados em seu protagonista conforme sua situação se agrava – e um bem-vindo humor involuntário, fruto do carisma de seu ator principal. É o tipo de filme que depende totalmente da montagem, que aqui funciona muito bem. Seu protagonista, condenado a ser um eterno prisioneiro para a diversão da audiência, evoca o mito grego de Sísifo, como comentado pelo diretor Ivan de Angelis em coletiva de imprensa. E é talvez nessas pretensões mais filosóficas que Abismo perde seu apelo, em seu final um tanto quanto pretensioso que diminui o exercício de estilo eficiente ao tentar ser mais profundo do que é.
MOSTRA HOURS CONCOURS
DESCULPE, ME AFOGUEI (RJ) – Animação – 6’35 min.
Sinopse:O mundo falhou drasticamente com milhões de pessoas que fogem de guerras, perseguição e desespero. Cálculos políticos se sobrepuseram a obrigações morais e legais de oferecer proteção e assistência àqueles que precisam. Como uma doença contagiosa, muros, cercas e medidas restritivas de controle de fronteiras se disseminaram de forma desenfreada, causando a morte de muitos milhares de pessoas em terra e no mar. A animação de seis minutos “Desculpe, Me Afoguei”, criado pelo estúdio Kawakeb, de Beirute, e Médicos Sem Fronteiras (MSF), foi inspirada em uma carta alegadamente encontrada junto ao corpo de uma pessoa que se afogou no mar Mediterrâneo, por culpa das políticas cínicas que prevalecem nos dias de hoje. Embora não possamos saber a verdade sobre quem escreveu a carta, sabemos que o que ela descreve é real. Essa realidade não pode continuar. Em 2016, mais de 20 mil pessoas foram resgatadas por MSF. MSF Continua realizando operações de busca e resgate no Mar Mediterrâneo.
Direção: Hussein Nakhal e David Hachby
Exibido junto a Mulheres Alteradas na mostra Mostra Hours Concours, “Descculpe, Me Afoguei” é um dos curtas mais poderosos exibidos aqui, e é uma pena que o mesmo não esteja na mostra competitiva. É provavelmente a obra que melhor equilibra sua forma com seu conteúdo. Chiados invadem a tela, criando formas não muito distinguíveis em preto e branco, quase um chiaroscuro. Recortes de políticos aparecem enquanto a narração em off lê uma carta carta supostamente encontrada junto ao corpo de uma pessoa que se afogou no mar Mediterrâneo, por culpa das políticas cínicas que prevalecem nos dias de hoje. A trilha sonora atmosférica não aposta em melodias definidas, apenas em ruídos de desconforto. O discurso, afinal, vem menos em tom de raiva ou tristeza e mais como um luto, quase conformista, e essa é a maior tragédia.