Analisando Kathryn Bigelow: A Hora Mais Escura (2012) e o inimigo real
Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa série de cinco textos serão analisados os filmes: Estranhos Prazeres (1995), Guerra ao Terror (2009), A Hora Mais Escura (2012) e Detroit em Rebelião (2017). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Kathryn Bigelow.
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Há relatos, sem muita comprovação, de que A Hora mais Escura teria sido feito às pressas para influenciar positivamente na reeleição de Barack Obama em 2012. Se influenciou ou não, jamais saberemos (é muita prepotência achar que um filme teria tamanho poder de influenciar uma eleição praticamente ganha). Diferente de Guerra ao Terror, essa nova empreitada de Kathryn Bigelow, adota um tom mais político e ao mesmo tempo distante de julgamentos morais sobre as acusações de tortura em prisões secretas nas centenas de bases militares dos EUA. Do ponto de vista político, os Estados Unidos da América sempre gostaram de esbravejar ao mundo sua enorme consideração em defesa dos direitos humanos, porém, na busca incessante pelo terrorista da vez, isso estaria suspenso.
Se existe um ponto realmente válido para toda a trama de A Hora mais Escura e para a história estadunidense no combate ao terrorismo, é que finalmente, os americanos tinham alguém de verdade para caçar. A era dos inimigos imaginários como vimos em Guerra ao Terror, pelo menos nesse caso, tinha acabado. Osama Bin Laden não era qualquer pessoa, era alguém que valia a caçada, a qualquer custo. Pode parecer estranho, ainda mais em tempos como hoje, mas independente do crime que o sujeito tenha cometido, está resguardado a ele e a seus comparsas, o direito à integridade física, psíquica e moral. Tortura é crime e não há outro crime que a justifique.
Métodos iguais, tecnologias diferentes
A agente da CIA, Maya (Jessica Chastain) chega a uma prisão secreta mantida pelos Estados Unidos em algum lugar do Paquistão e vai direto para uma sessão de interrogatório de um prisioneiro do Grupo Saudita, acusado de ajudar Osama Bin Laden a atacar as torres gêmeas no dia 11 de setembro de 2001. Acontece que não era um interrogatório qualquer, e sim, uma sessão de tortura. Essa é a primeira cena que Bigelow coloca em seu filme, podendo ser lido como uma sequência indireta de Guerra ao Terror, lançado quatro anos antes.
“Quando você mente para mim, eu te machuco”.
Essa é uma das falas repetidas pelo agente Dan (Jason Clarke) ao suposto terrorista, Ammar (Reda Kateb), que está amarrado com as mãos para cima, sem banho e sem condições dignas de uma prisão. Afogamento simulado, prisão em uma caixa do tamanho de um frigobar, jejum obrigatório e uma sala escura. São esses os primeiros 10 minutos da película roteirizada mais uma vez Mark Boal que consegue, aparentemente sem grandes esforços, unir as peças de um quebra-cabeça complexo, dada a quantidade de nomes, grupos terroristas, localizações, desafios e disfarces.
A maior polêmica em torno de A Hora mais Escura, são as cenas angustiantes de tortura que vão sendo espalhadas pelo filme à medida que a história avança. Durante o governo de George W. Bush, sua guerra ao terror, nome dado na busca incessante pelos terroristas responsáveis pelo 11/09, estipulou-se, com ajuda de muitos aliados, um vale tudo. Depois das torres gêmeas, outros atos terroristas seguiram acontecendo ao redor do mundo. São idas e vindas com interrogatórios, prisões secretas, suborno e muita paranoia. Como os atos terroristas continuavam a acontecer, a pressa e a pressão para uma solução se faziam presente em todos os atos.
Existe uma escolha interessante de contar essa história em capítulos, pois facilita o entendimento da narrativa e guia o espectador pela intensa rotina de trabalho e acontecimentos. O prêmio era a cabeça de Bin Laden, mas até lá, muita coisa aconteceu. Inclusive, existe um ponto fundamental que é a maneira como nos simpatizamos por Maya e toda a equipe de inteligência que ela participa, muito pela forma que Bigelow filma as personagens e adiciona ao contexto, uma exaustão viciante das pistas falsas e a reinvenção dos caminhos para chegar ao objetivo.
Quando em 2008 Barack Obama ganha as eleições e as denúncias de torturas nas prisões secretas vêm à tona, Maya intensifica o trabalho de inteligência. O chão de fábrica do dia a dia com os prisioneiros é deixado de lado, como se tivesse sido extinto pelo novo governo, e o foco, quase como um novo filme que começa, passa a ser na guerra de informação, inteligência e ataques com drone. A espionagem passa a ser mais importante do que incursões terrestres – como vimos em Guerra ao Terror – pois, depois de um tempo, os atos terroristas se acalmaram e Bin Laden, à beira de ser capturado, se escondeu.
Quem não se escondeu foi Maya que, obcecada pelo trabalho, continuou sua saga atrás de saber onde estava o terrorista prêmio. Junto a isso, a morte da amiga Jéssica (Jennifer Ehle) num atentado, abalam sua estrutura ao mesmo tempo que reforçam sua obsessão na captura. O anonimato, à medida que a tecnologia avança para militares e terroristas, passa a ser quase impossível. É assim que Maya e boa parte da sua equipe é descoberta, e ela, que ainda estava no Paquistão fazendo a investigação, é levada de volta à Langley, sede da CIA nos EUA. Nesse ponto, começa um novo filme. Recolhidas todas as informações a respeito da localização de Osama, aliada a tecnologia de satélites mais precisos, tudo se concentra numa tocaia em torno de uma casa suspeita.
Existe uma virada de tom muito curiosa, quase como se um novo filme de fato começasse faltando apenas 40 minutos para sua conclusão. Já em Langley, Maya reencontra seu primeiro parceiro Dan – que reaparece em outro momento do filme negociando informações – e a urgência se concentra em confirmar se a casa que de fato estavam de tocaia depois de uma longa perseguição de rastreabilidade feita em campo, era o local que Osama Bin Laden estava se escondendo. Reuniões são realizadas a exaustão para garantir se aquela casa era o esconderijo do terrorista e o tempo, contado de forma cômica por Maya na porta de vidro do seu chefe, George (Mark Strong), imprimem urgência e dão conta da ansiedade da nossa protagonista em dar um fim aquela missão.
Em determinado momento, há reuniões com o diretor da CIA, uma das últimas participações do grande James Gandolfini, já que o ator morreu precocemente meses depois do lançamento do filme. Depois de muita burocracia estatal, que acabam sendo tratadas pelo filme também de forma burocrática, Kathryn Bigelow retoma as rédeas e parte para a ação militar de base mais clássica que ela tão bem trabalhou em Guerra ao Terror. A operação militar feita às escondidas do governo paquistanês é um relativo sucesso, pois encontra Osama e o mata, assim como mata os outros adultos que estavam na casa com ele. É impressionante que, esse tempo todo, as pistas que se tinha de Osama escondido nas montanhas do Afeganistão jamais se confirmaram de verdade. Ele estava escondido debaixo do nariz de todos, na cidade de Abbottabad, próximo da capital paquistanesa, Islamabad.
Pode parecer estranho, mas os terroristas conseguiram escorregar de quase todas as tentativas de captura, especialmente Osama. Embora saibamos que de 2001 até hoje os Estados Unidos provocaram mais terror e não ironicamente, são financiadores de outros terroristas mundo afora, isso mais cedo ou mais tarde, pode retornar a eles em ato de vingança. Kathryn Bigelow mais uma vez, tenta fugir do espetáculo e aposta no choque quando, na cena excruciante de invasão ao esconderijo de Osama pelos militares, renuncia o uso de trilha sonora e aplica com gosto, o som seco dos tiros e arrombamentos de porta. O espetáculo mora justamente na própria captura do terrorista mais procurado de todos os tempos, incrementar essa cena com recursos dramáticos não fazia sentido, e que bom que ela não o fez.
Maya finalmente conclui sua missão quando confirma para o diretor da CIA que o homem morto era, sim, Osama Bin Laden. Num encerramento digno de alívio, Maya está sentada num avião cargueiro, sozinha, podendo escolher o destino para onde ir, e um close em seu rosto, com lágrimas escorrendo, responde a ela e a nós que passamos pelos longos 150 minutos de um texto carregado, imagens angustiantes de atentados, tortura explicita e estresse, que a missão estava concluída e já era possível descansar. A pátria estava finalmente protegida. O que os anos seguintes mostraram é que a pátria talvez estivesse protegida de perigos externos, mas não contavam com o terrorismo doméstico promovido pela extrema-direita. Felizmente ou não, isso é outra história que outros cineastas estão se debruçando para contar.
Filmes acontecem em um contexto – Parte Dois
Em 2013, um documento da CIA que solicitava reescritas no roteiro de Mark Boal foi revelado. Segundo o jornal britânico The Guardian, o documento sugeria que mudanças em cenas que poderiam ser comprometedoras para a agência fossem retiradas. Três cenas, em específico. A primeira revelava a personagem Maya ajudando na tortura com o afogamento simulado. No filme ela é apenas observadora. A segunda seria uma cena de tortura em que eram usados cachorros agressivos contra homens nus a fim de que eles contassem alguma informação. A terceira seria uma comemoração dos agentes após a morte de Bin Laden bebendo e atirando com um fuzil AK-47. É curioso pois, segundo a reportagem, todos esses fatos aconteceram na realidade, mas não durante a caça de Osama.
Bigelow e Boal foram investigados pelo comitê de inteligência do Senado estadunidense, para saber se ambos teriam tido “‘acesso inapropriado’ a material confidencial da CIA após preocupações de membros de alto escalão sobre a representação de tortura na busca pelo chefe da Al-Qaeda no filme”. A reportagem ainda diz que a investigação, que durou apenas um mês, foi deixada de lado depois do péssimo desempenho do filme na temporada de premiações, que por curiosidade, só levou para casa o prêmio de Melhor Edição de Som (na época, as categorias edição e mixagem de som eram separadas). O memorando do Senado, ainda levanta suspeitas sobre a relação muito próxima de Boal com a CIA, em que a agência estaria “confiante de que seria retratada positivamente devido ao nível de ajuda que havia fornecido aos cineastas.”
Essa suposta interferência que nunca foi confirmada, teria se dado através da agência que representa o roteirista. Boal negou as interferências e quando questionado sobre, disse que honraram “certos pedidos para manter os detalhes operacionais e a identidade dos participantes confidenciais”. E completa dizendo que “como em qualquer publicação ou obra de arte, as decisões finais quanto ao conteúdo foram tomadas pelos cineastas.” Se isso é verdade ou não, difícil saber. Ao que tudo indica, Bigelow nunca se envolveu diretamente na elaboração do roteiro, inclusive, consta que ela estaria trabalhando em um outro projeto quando Boal ofereceu a história da captura do chefe da Al-Qaeda.
A tortura é um tema central de A Hora mais Escura, logo, não era possível passar ileso de críticas e discussões. Kathryn Bigelow respondeu a todas essas críticas dizendo que o filme era uma ficção e não um documentário e que o trabalho apresentado fala por conta própria. A agência em defesa dos direitos humanos da ONU, Human Rights Watch, disse a época, junto a defensores dos direitos humanos da Câmara e Senado norte-americano que o filme “dá a falsa impressão de que a tortura era uma tática feia, mas útil, na luta contra o terrorismo” e de que a película “sugere – incorretamente – que as informações obtidas por meio de tortura foram essenciais para encontrar Osama bin Laden.” É preciso pontuar que o lançamento do filme, acontecia quando vários relatórios estavam sendo divulgados, e que nesses relatórios, a CIA e o Exército estadunidense se utilizavam de “técnicas de interrogatórios avançadas” para obter informações dos presos acusados de integrarem células terroristas. Se há pelo menos uma verdade nisso, é que as torturas realmente ocorreram e as informações são públicas.
Bigelow e suas personagens obcecadas
Kathryn Bigelow sempre se destacou por trabalhar com personagens masculinos. É assim com quase todos seus filmes, com exceção de três. Em Jogo Perverso (1989), a personagem de Jamie Lee Curtis, faz uma policial que é perseguida por um assassino em série e seu papel é sobreviver. Em Estranhos Prazeres (1995), que já analisamos nessa série, temos Angela Bassett como a representação firme da história. E agora em A Hora mais Escura, Maya, brilhantemente interpretada por Jessica Chastain, faz uma agente da CIA completamente obcecada com seu trabalho e com a tarefa que precisa ser cumprida.
Bigelow disse em uma entrevista para o The New York Times, que o que a atraiu para o filme não foi o papel de Maya, e sim o “o roteiro brilhante de Mark” (se referindo ao roteirista Mark Boal), e que a questão de gênero, como o fato de ela ser uma mulher e isso vir primeiro, a deixa irritada, mas não há muito o que fazer a não ser retomar a atenção para o filme que está promovendo. Talvez isso explique o porquê de personagens tão obcecados em seus filmes, parece que isso, de alguma forma, reflete um pouco a vida da diretora. É difícil saber algumas informações da vida privada de Bigelow e, geralmente, quando a diretora que não tem presença nas mídias aparece, sempre é a respeito de seu trabalho.
Há destaques importantes nesse novo filme que, apesar de parecer uma continuação indireta de Guerra ao Terror, a apresentação de algumas técnicas, como a filmagem da captura de Bin Laden a noite com os óculos de visão noturna, tiveram de ser pensadas exclusivamente para o filme, especialmente na precisão da imagem. Esse trabalho só foi possível, como a própria diretora pontua em entrevistas, graças ao diretor de fotografia Greig Fraser. Nessa mesma entrevista para o NY Times, Bigelow diz que a mansão em que Osama se escondia foi construída inteiramente, inclusive com a precisão do tamanho dos quartos, e dá o crédito a Jeremy Hindle, responsável pelo design de produção.
A Hora mais Escura é um filme complexo, enxuto e relativamente estruturado. Todas as técnicas e personalidade da diretora estão presentes e mais uma vez, pelo menos na minha opinião, ela promove um espetáculo de ação e drama a níveis seguros e de mexer com as emoções. Ao abrir seu filme com uma cena explicita de tortura, questiona as moralidades falsamente estáveis dos Estados Unidos e coloca o espectador numa posição propositalmente desconfortável. Parece haver mais liberdade da diretora em criticar o cinismo de seu país, passado o distanciamento dos acontecidos em 11/09 e a captura de Osama. Diferente de Guerra ao Terror, que há um ufanismo mais forte que o comum, nessa falsa-continuação a bola está no chão, os estereótipos muçulmanos são quase nulos e a liberdade da diretora em brincar com o que sabe fazer de melhor está visível.
Infelizmente, o único grande prêmio que A Hora mais Escura levou foi o Oscar de Melhor Edição de Som. Foi indicado ainda como Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor Montagem e Melhor Atriz para Jessica Chastain – que particularmente acho que deveria ter levado, visto que a atuação dela no tenebroso Os Olhos de Tammy Faye (2021) não é tão destacável como em A Hora Mais Escura. Penso também que a indicação a Bigelow era merecida, embora o seu grande legado, que é a ação, só dê as caras ao final, o que pode ter atrapalhado a nomeação. Existem deslizes evidentes em A Hora mais Escura, mas o fato é que Kathryn Bigelow, diferente do que o senso comum faz pensar, ainda mantém uma vitalidade obsessiva em suas histórias e em suas personagens, e só por isso, vale uma análise dessa magnitude.