Crítica: Os Ossos da Saudade – Cine PE 2021 - Cinem(ação)
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Crítica: Os Ossos da Saudade – Cine PE 2021

Os Ossos da Saudade – Cine PE 2021

Sinopse: Um filme sobre a ausência, narrado a partir das vivências de pessoas que experimentam sentimentos de falta e distância, espalhados por Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde. O corpo, a paisagem, a memória e o tempo. Histórias e lugares construídos com recordação, esquecimento e invenção. Uma viagem pelos territórios da memória, da representação e do pertencimento.
Direção: Marcos Pimentel
Roteiro: Marcos Pimentel e Ivan Morales Jr
Produção: Luana Melgaço
Direção de Fotografia: Matheus da Rocha Pereira
Montagem: Ivan Morales Jr.
Edição de Som: Bruno Vasconcelos

Os Ossos da Saudade é descrito como um “filme sobre a ausência”. Em vários momentos do documentário de Marcos Pimentel (A Arquitetura Do Corpo, de 2008, A Parte do Mundo que me Pertence, de 2017), vemos as pessoas que o filme acompanha caminhando por cenários inóspitos, que vão desde praias, dunas no deserto, a ruínas de casas e construções de concreto. Pimentel e seu diretor de fotografia Matheus da Rocha Pereira (que também fotografou outro filme presente no Cine PE 2021, “Receba!”) optam por frequentemente enquadrar essas pessoas em grandes planos abertos, que as isolam em cenários que podem ser considerados belos, mas, junto da narração em off melancólica desses indivíduos sobre saudades, lugares, pessoas e afetos deixados para trás, adquirem o sentimento de desamparo: o isolamento deles no quadro não é só literal. A ausência, de repente, não é mais sobre a vida que não se encontra presente ao redor nos solitários planos que o filme compõe (a natureza, mesmo que moribunda, também é vida). A ruína do cenário ao redor dos protagonistas não é só no plano físico.

Assim, Os Ossos da Saudade adota a missão de tornar visual alguns sentimentos não visuais e de tentar, como as pessoas que acompanha, enunciar um sentimento de difícil verbalização. São extraídos sentimentos contraditórios e, ao mesmo tempo, complementares. A ausência, através das câmeras de Pimentel e Pereira, é tanto sobre o que se encontra (e o que não se encontra) no quadro, ao redor dos protagonistas, quanto aos próprios corpos que caminham frente a câmera. Se temos uma sensação de estranheza pela falta de corpos ao redor das solitárias pessoas que caminham sobrem as paisagens que vemos aqui, sentimos igual estranheza ao vê-las como intrusas nesses cenários. O não-pertencimento adquire abordagens visuais que fazem jus à tarefa.

E é justamente essa abordagem de caráter contemplativo, não-linear, que pode transformar este documentário num filme difícil para os espectadores. Essa observação não é, no entanto, de cunho pejorativo. É louvável que a abordagem sensorial, à beira do experimental, exija que a audiência viva a experiência do filme sob seu próprio tempo cadenciado, sob seus próprios termos narrativos; o filme de Pimentel não economiza na prolongação de planos, muitas vezes estáticos, de indivíduos andando nessas ruínas enquanto tentam, na narração em off, concatenar ideias e palavras que honrem o sentimento opressor que experimentam.

Como verbalizar a saudade, afinal de contas? Uma mãe que partiu do país de origem junto do filho; um homem que sente falta do irmão que partiu; uma professora de capoeira brasileira morando no exterior e que sente falta de suas raízes. Nas declarações e planos abertos que adquirem justamente o sentimento inverso, o de opressão, temos um filme que transmite a angústia da saudade visualmente, de forma muito eficaz. As imagens do fundo do mar que abrem a projeção, por exemplo, atribuem prontamente essa sensação onírica do subconsciente, como num sonho: criaturas marítimas, sua anatomia e forma de difícil descrição, pairando na paleta azul da tristeza, na calma inaudível do mar, mas no desespero do vazio negro. É tentar dar cara à saudade. Se interpretações como essa soam excessivamente românticas, é porque talvez o documentário desafie quem o assiste a fazer justamente isso; não a romantização da tristeza, mas a capacidade de interpretar simbolismos visuais de caráter muito eficaz. Não deixa de ser uma abordagem corajosa por parte de Pimentel.

Um efeito muito forte ocorre próximo ao final de Os Ossos da Saudade, quando vemos planos-detalhes de objetos – um vaso, uma carteira, uma foto – das pessoas que acompanhamos ao decorrer do filme. Em contraponto dos frequentes planos que empequenecem as pessoas que o filme acompanha diante do mundo em ruínas da saudade, o filme nos apresenta planos-detalhes desses artefatos, gigantes na tela, em imagens cortantes que trazem o tamanho do afeto, o peso da ausência.

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