“1964: O Brasil Entre Armas e Livros”: e a (des)verdade de cada um
Sempre que falamos sobre cinema (na verdade isso se aplica a tudo nessa vida) corremos o risco de cair na armadilha dos chavões populares e reproduzirmos termos que entraram no vocabulário popular e por vezes custam a sair. Um exemplo disso é quem fala de que cinema brasileiro só tem “sexo” (poupando-lhes do termo realmente usado) ou que cinema blockbuster é tudo produto vazio sem valor artístico. Outro, agora sim objeto de interesse desse texto, é o chavão “documentário representa a realidade” enquanto a ficção cria sua próprias realidades.
Vamos pensar na maneira mais pragmática possível. O que define um documentário? O dicionário online Priberam diz que documentário é algo “que tem o valor de documentos”. Já o dicionário online Dicio nos traz a seguinte definição: “filme montado com filmagens de acontecimentos reais”. Podemos entender então que documentário é uma obra com valor documental montado a partir de um fato real. Ou seja, se eu pegar uma câmera e documentar, ou registrar o funcionamento de um chão de fábrica, eu estaria produzindo um documentário sobre o chão de um fábrica. Certo? Sim. Mas será que eu poderia dizer que eu estaria documentando a realidade de um chão de uma fábrica? Aqui podemos nos aprofundar um pouco mais.
Segundo Bill Nichols, crítico de cinema e teórico americano conhecido por seu trabalho pioneiro como fundador do estudo contemporâneo do documentário em seu livro “Introdução ao documentário” de 2012, “para cada documentário, há pelo menos três histórias que se entrelaçam: a do cineasta, a do filme e a do público”. Vamos entender na prática. Observe essa imagem abaixo registrada durante as manifestações conhecidas como “Jornadas de Julho de 2013”.
Essa imagem é um registro, um documento que revela um acontecimento real. Ou seja, tem valor documental. E qual a realidade dessa foto? Segundo Nichols existem três. Por exemplo, se a pessoa que fez esse registro escreve na legenda da foto: “policial é agredido por baderneiro”. A realidade seria uma. E se a legenda for “manifestante reage a truculência da polícia”. Ai teríamos outra realidade. Nesse momento o realizador, ou o cineasta tem o poder de dizer qual a realidade daquele documento.
Mas Nichols fala de no mínimo 3 realidades. Continuemos com a mesma imagem. Essa foto, dada a informação que dei anteriormente, é contextualizada como parte das manifestações de Julho de 2013. Mas digamos que de início eu tivesse dito que fora uma foto tirada durante uma partida de futebol? Qual seria a realidade da foto? Certamente outra completamente diferente. Dessa forma Nichols nos mostra que o filme, o contexto histórico, a obra, nos direciona para uma realidade específica. Mas digamos que não houvesse contextualização alguma. Qual seria a realidade da foto?
Faça um exercício simples. Como você imagina que um policial entende essa foto? Como um manifestante internaliza e contextualiza a mesma imagem? E se quem estivesse vendo fosse um defensor da ditadura? Isso é o que Nichols quer nos mostrar quanto ele diz que “públicos diferentes veem coisas diferentes; apresentar ou promover um filme de uma determinada maneira pode preparar os espectadores a vê-lo de uma forma e não de outra”. Ou seja, um documentário não nos oferece a realidade de um acontecimento, e sim uma ou mais realidades de várias possíveis. Toda essa contextualiza serve para entender como funciona o revisionismo histórico do filme “1964: O Brasil Entre Armas e Livros” disponibilizado de forma gratuita no YouTube.
Objeto de muita contradição, o documentário produzido pela produtora independente Brasil Paralelo tem como objetivo revisar a história da ditadura militar instaurada no Brasil entre 1964 e 1985, tendo como público alvo, pessoas que de alguma forma questionam a história e apoiam o regime militar. Essa informação corrobora com a linguagem utilizada no filme. Basta ver qualquer vídeo desses compartilhados em grupos de whatsapp falando sobre os males do comunismo, do marxismos e tudo que esses grupos de ultra-direitistas vêm como inimigos, o será observado as semelhanças na estética proposta.
A pobreza estilística está presente na trilha sonora compulsiva e invasiva que funciona como ferramenta de manipulação de sentimentos variando de uma música densa e sombria quando a obra retrata os planos de dominação mundial dos comunistas, para uma marcha eufórica e heroica ao expor a valentia dos militares que nos salvaram das mãos dos comunistas, como se fosse aquela cena de “Os Vingadores” quando Joss Whedon filma todos os heróis lutando bravamente contra uma invasão alienígena.
Esse é o direcionamento que os diretores Filipe Valerim e Lucas Ferrugem querem nos mostrar, ou seja, é a realidade que eles acreditam e querem que acreditemos. O documentário é estruturado em 3 partes sendo a primeira uma contextualização histórica mundial que mostra que havia um plano de dominação mundial por parte dos soviéticos. As duas seguinte corresponde a justificar a ação do golpe e a terceira visa relativizar a crueldade desse regime. Para validar essas posições, a obra se vale de algumas entrevistas com historiadores e pesquisadores tanto brasileiros como estrangeiros colocando-os como referências no assunto.
Utilizando uma linguagem simples mas eficaz, o documentário apresenta uma série de depoimentos de pesquisadores que descobriram documentos que atestam esses tais planos de dominação mundial. Porém, tais documentos não passam de atas de reunião entre núcleos comunistas espalhados pelo mundo todo ou citações que alguém ouviu de alguém que ficou sabendo de alguém. Quando chega no Brasil, a fragilidade desses documentados ficam ainda mais evidentes com apenas algumas menções ao país e ações de alguns núcleos políticos como PCdoB que já na época se mostrava tão incapaz de organizar uma comitiva nacional, quanto de planejar uma revolução de tomada de poder e implantação de uma ditadura comunista.
Outro problema da obra está na proposital descontextualização de fatos históricos, atirando-os à esmo com a intenção de criar um perigo inexiste ou insuficiente. Um exemplo disso é no momento quando um pouco antes do golpe, o então presidente João Goulart fazia uma viagem internacional e um grupo organizado cria um emboscada para impedir que o presidente adentre a sede do Governo. Após dizer isso para criar uma real ameaça ao Estado, o documentário abandona essa narrativa e não toca mais no assunto. Não é mostrado o resultado daquela emboscada.
Essas informações jogadas para criar uma ameaça inexistente é vista no documentário inteiro. Depoentes citam falas ditas em discursos abertos de presidentes mas nunca as ouvimos, e mesmo sabendo que naquela época nem tudo era registrado como acontece hoje, é possível encontrar diversos desses áudios como fez o podcast “Presidente da Semana” que nos trouxe uma visão mais apurada e menos maniqueístas dos mesmos acontecimentos.
Dizer que o documentário inventa mentiras pode ser leviano da minha parte, mas é facilmente identificável mecânicos que dado o víeis de confirmação do seu público alvo, servirão de atestado de uma ameaça real. Apenas para contextualizar, basicamente viés de confirmação é a reunião seletiva de evidências que sustentam o que uma pessoa já acredita enquanto se ignoram ou se rejeitam evidências que sustenta uma conclusão diferente. Quando o documentário fala sobre os “excessos” da ditadura, o faz como justificativa de uma ameaça de grupos terroristas de esquerda. Para “provar” isso, a obra apresenta casos de ataques de grupos de guerrilheiros e ignoram todos os casos de tortura, sequestro e assassinatos por parte do Estado.
Curiosamente “1964: O Brasil Entre Armas e Livros” não nega a existência de uma ditadura e nem de um golpe militar como muitos o faz, inclusive nosso Presidente, mas a relativiza como se fosse algo menor do que é dito por historiadores. Para justificar essa visão, o documentário mostra por meio de 6 exemplos (incomprováveis) que pessoas não “desapareceram” na época da ditadura e sim mudaram de nomes para se proteger, como se isso correspondesse a todas as centenas de pessoas que desapareceram ou morreram durante aquele período. Novamente, há um direcionamento dos realizadores que omitem algumas informações para manter sua narrativa, sua realidade.
“1964: O Brasil Entre Armas e Livros” funciona perfeitamente para reforçar uma realidade de quem acredita nessa negação histórica. É uma obra que não apresenta qualquer valor informativo para quem já estudou o mínimo de história do Brasil. Esteticamente pobre, o documentário apela para o maniqueísmo barato para criar seus heróis e vilões. Dizer que a obra não é um documentário de verdade é ignorar que documentários podem nos revelar várias realidades e que cabe a nós identificar qual a real intenção do filme.