Dia do Cinema Brasileiro: na poeira das latas, aquilo que ainda não vimos
Artigo

Dia do Cinema Brasileiro: na poeira das latas, aquilo que ainda não vimos

Desde que Affonso Segreto eternizou as imagens da Baía de Guanabara, em 19 de junho de 1898, convencionou-se que ali nascia o cinema brasileiro. Como país colonizado, a inovação do velho mundo chegou até nós pelas mãos de um cineasta viajante e curioso. De todo modo, o fato é que esse registro de um segundo se tornou o primeiro filme e, também, documento histórico de que o cinema havia chegado ao Brasil — e isso é importante porque hoje, caro leitor, é sobre memória, história e cinema brasileiro que iremos falar.

Antes, uma breve confissão: todos os anos me interesso cada vez menos pelas listas imensas e as enormes declarações de amor que muitos veículos e criadores de conteúdo brasileiros fazem quando o dia se aproxima. Salvo raras exceções, é frustrante ver como a empolgação com o cinema brasileiro se limita a uma única data no ano. Não ver essa paixão em função de discutir a importância da regulação do streaming, para reforço da imprescindibilidade das cotas de tela, ou mesmo para incentivar a ida ao cinema nas tão definitivas primeiras semanas de estreia de um filme brasileiro.

Nos outros 364 dias do ano, o silêncio está bem disfarçado em meio às distrações: dezenas de estreias internacionais por semana invadem os grandes portais de entretenimento do país com letras garrafais e as salas de cinema continuam cheias de demandas fantasmas que se justificam pobremente pela lei da oferta e da procura. A inércia de uns me faz pensar se seria a falta de interesse, o total desconhecimento ou, simplesmente, uma questão de likes, dado o fato de que um conteúdo sobre cinema nacional não rende a mesma quantidade de views que um novo enlatado renderia, logo, não merece a mesma dedicação de tempo.

Ainda assim, nenhuma das alternativas acima são capazes de justificar o fato de que, quando um filme nacional é ruim, muitos desses mesmos portais e criadores de conteúdo se apressam em atirar a primeira pedra. Não há problema algum em apontar problemas em filmes brasileiros ou até mesmo no cinema brasileiro, é nossa obrigação não sermos condescendentes. Mas há uma diferença clara entre crítica e desprezo — especialmente num país que produz centenas de filmes todos os anos. É desperdício de tempo empenhar esforços para pedir a quem não tem interesse pelo que é produzido aqui e, pelas ações, já deixou claro seu viés, fale de cinema brasileiro. Além do mais, é deixar imensa responsabilidade nas mãos de pessoas que sempre irão se esquivar de assumi-la.

O Caso dos Irmãos Naves (1965)

Quanto mais me apaixono pelo nosso cinema, maior minha frustração com as oportunidades desperdiçadas de levantar assuntos verdadeiramente relevantes no dia 19 de junho. Este ano, eu quero usar esse dia para falar sobre algo que para mim tem se tornado cada vez mais indispensável nas discussões sobre cinema no século XXI: restauração. Frequentemente esquecido nos debates, o tema da restauração e da preservação do audiovisual brasileiro quase não tem espaço inclusive na programação de grandes festivais tradicionais no nosso calendário. Não é uma pauta recorrente nas universidades de cinema por aqui, nem mesmo tem espaço em editais.

Os profissionais que se dedicam a esse trabalho técnico e minucioso são escassos e, muitas vezes, mal remunerados. O cenário é ainda mais preocupante quando notamos que a maioria da comunidade audiovisual brasileira, incluindo críticos, cinéfilos e profissionais da indústria, não citam com frequência filmes nacionais anteriores ao cinema novo ou, quando montam listas pessoais, o fazem com baixíssima diversidade de diretores, temáticas e regiões do país — e me incluo nisso.

Me questiono: onde está o cinema brasileiro anterior à década de 50? Onde estão os filmes brasileiros produzidos na região norte e nordeste? Onde estão aqueles produzidos com baixíssimo orçamento? E os filmes feitos por mulheres, pessoas pretas, LGBTs e indígenas? Teria a restauração o poder de redesenhar a história do cinema brasileiro como conhecemos? Provavelmente sim, talvez até para além do que imaginamos.

A obra de Walter Salles no ano passado abriu uma caixa de pandora no país no que diz respeito à importância da preservação da memória coletiva, mas o nosso cinema ainda carece dessa conversa de forma aprofundada, séria e urgente. Um país que não olha com cuidado para o passado, será para sempre refém de um futuro frágil. Foi preciso que a fundação capitaneada por Martin Scorsese restaurasse Limite (1931) de Mário Peixoto para que hoje ele esteja em amplo acesso com qualidade aceitável. É preciso que a Cinelimite, uma fundação sem fins lucrativos, se debruce sobre o cinema queer em Super 8 da Paraíba (belíssimo trabalho, por sinal), para que possamos assistir a algo feito fora do eixo sul-sudeste e com inegável importância para a nossa história.

A Rainha Diaba (1974)

É preciso que empresas como a Petrobrás se mobilizem para que um filme de máxima importância para compreender o Brasil, como Caso dos Irmãos Naves (1965) de Luís Sérgio Person, seja restaurado. O mesmo aconteceu com a restauração de Deus e O Diabo na Terra do Sol (1964), projeto coordenado por Lino Meireles e Paloma Rocha junto à Cinemateca Brasileira e a Cinecolor, A Rainha Diaba (1974) restaurado pela Cinelimite e mais recentemente Saneamento Básico, O Filme (2007) que na onda de popularidade de Fernanda Torres e Wagner Moura, foi relançado nos cinemas. A Cinemateca Brasileira e a Cinelimite, a nível de exemplo, têm desenvolvido um trabalho essencial nesse cenário, enquanto festivais como o CineOP, Mostra SP e Fest Aruanda estão abrindo mais espaços para essa conversa.

Longe do suficiente, mas acredito que são iniciativas como a do Banco de Conteúdos Culturais da Cinemateca, por exemplo, que devem ser reconhecidas e incentivadas pois são capazes de enriquecer a relação do brasileiro com o cinema feito aqui, aumentando a diversidade das curadorias e nos forçando a ir além, geográfica e temporalmente, no que temos enquanto patrimônio. Enquanto o problema da restauração persistir no país como está, maior o efeito cascata que cairá sobre nossos outros calcanhares de Aquiles, como a pesquisa, a acessibilidade e a distribuição.

É preciso usar o dia do cinema brasileiro para algo além da celebração. Para cobrar autoridades e instituições a fim de preservar aquilo que é nosso, conservar apropriadamente a memória coletiva de um país inteiro que aguarda em latas espalhadas em museus, universidades e acervos pessoais, apenas na expectativa de serem exploradas. Sei que não é apenas a comunidade audiovisual que se beneficiaria, mas todo um país de cinema centenário. Basta ver o quanto iniciativas de restauração têm mobilizado a comunidade, principalmente uma faixa-etária mais jovem, em direção aos cinemas e às plataformas de streaming.

O cinema brasileiro está longe de ser limitado, mas talvez exista limitação em nós mesmos. No nosso conhecimento, na nossa defesa, na nossa memória. Nas sábias palavras de Eduardo Coutinho, “O tempo lembrado, o tempo narrado, é sempre mais rico que o tempo vivido”. Por isso é tão importante olhar para o passado, para compreender o futuro. Não há cinema no Brasil, nem no mundo, sem olhar para ele.

Deixe seu comentário

×
Cinemação

Já vai cinéfilo? Não perca nada, inscreva-se!

Receba as novidades e tudo sobre a sétima arte direto no seu e-mail.

    Não se preocupe, não gostamos de spam.