“O Eternauta”: quando a ficção científica escreve nossa história melhor que os livros
Vamos começar com um fato óbvio: O Eternauta não é “só” mais uma série de invasão alienígena. É um soco disfarçado de entretenimento — e, como todo bom soco, dói porque acerta no lugar certo.
A Netflix pegou um clássico dos quadrinhos argentinos dos anos 1950, deu um banho de CGI e entregou nas nossas telas como se fosse apenas mais um produto da era do streaming. Só que aqui, o passado e o presente colidem com uma força que beira o incômodo. A tal “nevasca radioativa” que extermina Buenos Aires não é só um recurso de ficção científica: é a metáfora mais óbvia (e dolorosa) da ditadura argentina — e, por extensão, de todas as ditaduras que assombraram a América Latina.
O roteiro segue Juan Salvo (Ricardo Darín, sempre magistral), um homem comum que vira herói por acidente. Mas o verdadeiro protagonismo aqui é coletivo: são os vizinhos, os operários, os invisíveis que se tornam resistência quando o Estado desaba. E aí está a genialidade da obra original de Oesterheld e Solano López: numa época em que falar de repressão direto era impossível, eles criaram uma alegoria tão potente que sobreviveu ao próprio autor.
Falemos do elefante na sala: Héctor Oesterheld, o criador da HQ, foi sequestrado, torturado e desaparecido em 1977. Quatro de suas filhas também. Sua obra, porém, sobreviveu — e hoje ecoa como um aviso em tempos de revisionismo barato. A neve que apaga corpos na ficção é a mesma que tentou apagar memórias na vida real. Os “inimigos invisíveis” da série são os mesmos que, décadas depois, ainda insistem em dizer que “foi uma guerra justa”.
O que mais assusta não é a ficção, mas perceber como Oesterheld previu o presente. A neve nunca parou de cair — só mudou de nome. Agora se chama fake news, arquivos secretos, “mas e o comunismo?”. O final da HQ original é um loop infinito de opressão, e a série não tem medo de lembrar: a América Latina ainda vive presa nesse ciclo.
Não é à toa que a série chega agora, quando Brasil e Argentina veem discursos negacionistas ganharem espaço. Assistir a O Eternauta em 2025 não é um ato de entretenimento — é um ato político. Porque a arte que incomoda sempre foi perigosa, e essa aqui incomoda muito. Não por seus efeitos especiais (que são medianos), mas por nos obrigar a encarar o óbvio: há feridas que ainda sangram, e histórias que não podem ser apagadas.
No fim, Oesterheld estava certo. O verdadeiro herói nunca foi um homem só — é o coletivo, o povo, a resistência que se ergue mesmo na nevasca. E O Eternauta, com todas suas imperfeições, é mais um grito numa luta que não acabou.
Porque, no fundo, todos nós somos eternautas — viajantes de um passado que insiste em não passar.