Conclaves cinematográficos: as semelhanças e dilemas de Habemus Papam (2011), Dois Papas (2019) e Conclave (2024)
O cinema sempre se debruçou com projeções e imaginações a respeito do que é oculto: forças malignas, entidades sigilosas e, claramente, a Igreja Católica. Na ausência de transparência sobre ritos e entranhas, a ficção ocupa esse vasto espaço e oferece diversas saídas, soluções, mistérios, fantasia, terror e sexualidade sobre a maior instituição do planeta. Ainda que filmes sobre o papado não constituam um subgênero próprio, o caso do Nunsploitation, em que freiras são o alvo da ficcionalização – Os Demônios (1971), Maus Hábitos (1983), Benedetta (2021) etc –, há filmes interessantes sobre o sucessor do trono de São Pedro. Recentemente esteve no Oscar Conclave (2024), filme ganhador do prêmio de Roteiro Adaptado, contando das brigas políticas em torno da escolha do novo papa.
Não deixa de ser uma cômica coincidência da vida cotidiana, que no momento da campanha de Conclave para o Oscar, Papa Francisco viria a ser internado por problemas de saúde e, curiosamente, o filme ter entrado para streaming no Prime Vídeo, um dia antes da morte de Francisco, no último dia 21 de abril. Obviamente o filme subiu para o Top 10 de mais assistidos da plataforma e continua até hoje. Para aqueles que acreditam em coincidências divinas, o papa faleceu um dia depois da Páscoa, data simbólica aos católicos como representação da ressurreição de Jesus Cristo. Misturados esses fatos e com o conclave real para acontecer no próximo dia 07 de maio, três filmes sobre a escolha do mais alto líder da igreja católica e que representam tempos diferentes do papel da religião, me saltaram à mente: Habemus Papam (2011), Dois Papas (2019) e, obviamente, Conclave (2024).
Para crentes e não crentes, é inegável o papel institucional marcante do Papa Francisco. Argentino e o primeiro papa latinoamericano, promoveu mudanças consideráveis na história da igreja. Nada brusco, é verdade, mas impossível dizer que deixou as coisas como estavam. Logo, a escolha de três filmes de diretores com estilos diferentes, olhando com alguma distância temporal, parecem refletir a mudança do tempo histórico, do valor da igreja católica no mundo e de como todos eles parecem querer apontar para caminhos semelhantes quanto ao destino da maior instituição religiosa do planeta. Todos, em maior ou menor grau, se propõem a refletir sobre os dilemas éticos e morais do cargo, apontando friamente ou calorosamente para os desafios da inclusão e das enormes contradições.
O mais esperançoso parece ser Habemus Papam, do diretor italiano Nanni Moretti. Esperançoso, pois o filme lançado em 2011 não tinha se dado conta dos escândalos do Vaticano a respeito da sua instituição financeira, mas era de conhecimento público o criminoso acobertamento de abusos sexuais feitos por padres ao redor do mundo. É verdade que não na proporção que viria a acontecer no ano seguinte ao lançamento, apesar de ser fato antigo, especialmente na Itália, berço do diretor e da igreja. A esperança é mais pelo sentido perdido do tempo histórico, do que necessariamente pela ação do diretor. Nanni Moretti tem estilo autoral e especialmente divertido, numa mistura de melodrama e comédia como nenhum outro.
Em Habemus Papam, Moretti começa seu filme num conclave, apontando a indecisão como marco central da discussão. Quando o grupo de cardeais escolhem o Papa, vivido brilhantemente pelo saudoso Michel Piccoli, antes de seu anúncio na famosa sacada da Basílica de São Pedro, o Papa tem uma crise de pânico e abandona o posto, deixando milhões de fieis à sua espera. Para ajudar na resolução do problema, convidam um psicanalista ateu, vivido por Nanni Moretti, para ficar recluso com mais de cem cardeais, na esperança de ajudar o novo Papa com sessões de psicanálise. O Papa foge do Vaticano e vai atrás de descobrir qual decisão tomar. Moretti sempre participativo em seus longas, na câmera, atrás dela e no texto, aponta para algo mais progressista, do Sul Global e que entenda melhor os novos tempos, fazendo uma clara oposição ao andamento dado pela igreja sob as mãos de Bento XVI.
Os sinais trocam em Dois Papas, quando a busca por um realismo se faz presente, dando lugar a um quase mockumentary sob o domínio afiado do diretor brasileiro Fernando Meirelles. Esse fato apresenta uma nova interpretação calcada na decomposição do papado de Bento XVI e na ascensão de Francisco. Lançado em 2019, Francisco estava no posto havia seis anos – Bento XVI havia renunciado em 2013 – e tinha colocado alguma ordem no banco do Vaticano, avançado na investigação sobre os crimes cometidos por padres e bispos e feito gestos minúsculos para a inclusão da comunidade LGBTQIA + e as mulheres na vida da igreja. Alguns críticos apontam que Francisco, visto como progressista, só fez seguir a doutrina, abrir a igreja aos pobres, marginalizados e excluídos, ao mesmo tempo que trouxe o debate sobre mudanças climáticas.
Mantendo sua clássica câmera na mão, com zoom-in e zoom-out para buscar o melhor movimento da ação, Fernando Meirelles compõe uma cena dialética e cheia de diálogos entre Francisco, interpretado por Jonathan Pryce e Bento XVI, vivido por Anthony Hopkins, meses antes da renúncia de Bento XVI – o último papa a renunciar o cargo, Gregório XII, tinha acontecido 700 anos atrás, em 1415. Supostamente essa conversa teria acontecido na vida real, mas não confirmada por nenhum dos conversantes. O mais interessante da abordagem de Meirelles, é como Francisco parece o homem correto para o momento, ao mesmo tempo que não é visto como o homem ideal. As manias aborrecidas do diretor chamam mais atenção do que o necessário, mas acobertam um texto fraco em que diálogos filosóficos e teológicos parecem saídos de um biscoito da sorte.
Puramente ficcional e com ares de batalha naval, Conclave, do diretor alemão Edward Berger, foca exclusivamente na cerimônia para a escolha do novo papa. Berger vê o conclave como uma guerra, assim como seu último filme de maior atenção, Nada de Novo no Front (2022), lançado dois anos antes e vencedor do Oscar em várias categorias, incluindo Melhor Filme Internacional. Berger tem um estilo clássico na direção e faz de Conclave um misto de rituais obsessivos altamente eróticos, dando ênfase a planos detalhes, a conversas de corredor na articulação política e de como os ânimos acalorados dos cardeais, refletem o fechamento da sociedade em guetos, numa ópera conduzida com maestria por Ralph Fiennes.
Conclave ficciona a escolha do novo papa num tempo em que as divisões da sociedade estão acaloradas, forças da extrema-direita que sempre estiveram dentro da igreja de forma discreta, hoje encontram terrenos férteis nas mídias sociais para espalhar desinformação e doutrinas ultraconservadoras e empurra o debate para o futuro como nenhum outro filme conseguiu fazer. Conclave tem a sorte e o azar de ser fruto do seu tempo, assim como Habemus Papam, com a fundamental diferença que a ironia da escolha do pontífice, passa a ser mais sobre decisões que envolvem ética e poder humanas do que espirituais. Não há espaços para especulações biográficas como em Dois Papas, nem em inseguranças espirituais como no filme de Moretti, embora as inseguranças do Papa de Nanni Moretti digam respeito a uma vida não vivida em sua completude desejante.
O mais interessante é que os três filmes conseguem propor discussões éticas e dilemas morais a respeito da hierarquia da igreja, dos erros e acertos das decisões altamente humanas e da dúvida como motor fundamental para a decisão. Não há ninguém imune às inseguranças do cargo e os três diretores representam essa complexa e ambivalente emoção com cuidado e atenção. A simplicidade elegante e eloquente de Nanni Moretti com altas doses de humor italiano; a malemolência latina e, porque não, aconchegante, de Fernando Meirelles; e a frieza, precisão e esperança alemã de reconstrução de Edward Berger. Outra coincidência é que todos eles apontam para um destino da igreja altamente globalizante e que reflita a necessidade de outros povos, especialmente aqueles abaixo da linha do equador da discussão geopolítica.
Conclave, entre todos, parece ser o mais próximo da representação arquetípica do clero, e talvez o mais ousado, quando propõe que as questões de gênero – assunto tabu dentro da cúria – sejam fundamentalmente interligadas ao debate. É mais corajoso quando discute o papel das mulheres, especialmente as freiras, numa dinâmica poderosa na atuação de Isabella Rossellini. Reflete melhor o papel inegavelmente relevante da igreja católica nos tempos atuais, o poder relevante das decisões humanas e menos espirituais de um coletivo, criando contrastes interessantes com Habemus Papam, em que a sensação de tempos mais tranquilos dentro da igreja e da própria sociedade pareciam uma realidade.
Em Dois Papas os assuntos são transformados num entendimento de biografias, refletindo a visão de dois sujeitos que inegavelmente ficarão para a história. Bento XVI, um conservador que fez um gesto impensável. Francisco, um sujeito que, para parte dos praticantes parecia um revolucionário, mas como o filme de Meirelles bem retrata, era uma pessoa como qualquer outra. O colunista da Folha de São Paulo, Celso Rocha de Barros, fez um resumo interessante: “Francisco fez uma bem-vinda mudança de foco para os pecados da maioria, o consumismo, a indiferença diante da miséria, a depredação da criação. Defendeu os pobres, e os mais pobres entre os pobres; os excluídos, e os mais excluídos entre os excluídos. É o que o Evangelho manda fazer. Se isso pareceu radical no mundo de hoje, o problema é do mundo de hoje.”
O cinema, diante do momento histórico, fez seu papel de acompanhar o movimento do mundo. Ao olhar o registro de 2011 feito por Moretti, são cutucadas irônicas e precisas sobre a mudança vista como necessária; com Meirelles em 2019, aprofunda-se o debate moral, ora se abstendo na crítica frente à omissão, ora se compadecendo com humor na diferença; e Berger se posicionando com aparatos robustos de crítica, com algumas obviedades simplórias e se apoiando no conceito de incerteza para seguir sua jornada. Se as mudanças preconizadas pelos filmes vão acontecer, e quais os impactos num mundo que parece ter mudado rápido demais, é preciso esperar até dia 07. Para aqueles que creem, deve haver algum sentido de fé na espera e na mudança, para os que não creem, deve haver fé no poder da arte de contá-los à sua bela maneira.