Crítica: Emilia Pérez
Emilia Pérez – Ficha técnica:
Diretor: Jacques Audiard
Roteiro: Jacques Audiard, Thomas Bidegain e Léa Mysius
Nacionalidade e Lançamento: França, México
Elenco: Zoë Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez, Édgar Ramírez e Adriana Paz
Sinopse: Rita é uma advogada habilidosa que trabalha em um escritório mais comprometido com a lavagem de dinheiro do que com a justiça. Envolvida nesse mundo de corrupção para garantir sua sobrevivência, ela é contratada por Juan “Manitas” Del Monte, um poderoso chefe de cartel que deseja abandonar o crime. Seu objetivo não é apenas desaparecer das garras da lei, mas realizar sua transição de gênero e finalmente se tornar Emilia Pérez, a mulher que sempre sonhou ser. Enquanto Rita e Emilia enfrentam os desafios de deixar o passado para trás, suas vidas se entrelaçam em uma história marcada por redenção, identidade e coragem.
“Emilia Pérez” é uma obra que chega às telas como um convite ao inesperado, desafiando as convenções e misturando gêneros de maneira tão ousada quanto fascinante. Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o filme traz à tona um caleidoscópio de temas que vão desde a transição de gênero até os desdobramentos de uma vida marcada pela violência e busca de redenção. Embora seja uma produção franco-belga, a história se passa no México, com todas as suas contradições e riqueza cultural, mas curiosamente filmada em estúdios parisienses – um detalhe que, para alguns, pode soar como uma contradição, mas que Audiard usa para construir uma atmosfera quase onírica. No entanto, essa escolha também gera um distanciamento da realidade retratada, esbarrando em um exotismo que pode suavizar a dureza do contexto social e político abordado.
A trama central gira em torno de Juan “Manitas” Del Monte, um chefe de cartel que, em um gesto que mistura coragem e vulnerabilidade, decide abandonar o mundo do crime e abraçar sua verdadeira identidade: Emilia Pérez. Essa jornada é mediada por Rita Mora Castro, advogada cuja trajetória reflete tanto cumplicidade quanto o peso moral de suas escolhas. O roteiro de Audiard trata essa transformação com sensibilidade e uma surpreendente leveza, intercalando cenas musicais que, longe de soarem deslocadas, funcionam como extensões naturais dos sentimentos dos personagens. No entanto, há momentos em que essa abordagem quase lúdica pode minimizar a gravidade dos temas tratados, criando um contraste entre a forma e o conteúdo que pode não agradar a todos.
O grande destaque do elenco é Karla Sofía Gascón, que vive a dualidade entre o imponente chefe de cartel e a delicada Emilia com uma profundidade comovente. Sua performance captura tanto a dor da repressão quanto a beleza da libertação, num equilíbrio que poucos atores conseguem alcançar. Zoe Saldaña também impressiona como Rita, trazendo um carisma explosivo em seus momentos musicais e uma carga emocional que dá peso às decisões da personagem. Selena Gomez, por sua vez, brilha em um papel que, embora menor, entrega uma intensidade notável como Jessi, a esposa de Manitas, onde as camadas revelam o impacto do mundo do crime na intimidade familiar. Ainda assim, algumas das personagens femininas poderiam ser mais aprofundadas, já que, em certos momentos, seus conflitos individuais acabam ficando em segundo plano diante da grandiosidade da jornada de Emilia.
O que realmente distingue “Emilia Pérez” é a integração dos elementos musicais. As canções surgem de forma orgânica, quase como uma extensão dos diálogos, e funcionam não só como alívio narrativo, mas como um espelho dos conflitos internos dos personagens. A trilha sonora, embora simples, é eficaz ao capturar a ironia e a melancolia da história, enquanto as coreografias de Damien Jalet evitam os clichês do gênero, optando por uma abordagem discreta e elegante. Este caráter híbrido da obra – transitando entre o musical e o drama criminal – certamente pode dificultar a imersão em alguns momentos, especialmente para espectadores que esperam uma estrutura mais convencional, mas quando a intenção fica entendida, os números musicais transitam muito bem pela obra, com maior ou menor impacto narrativo.
Ainda assim, o filme sofre com alguns problemas. A decisão de recriar o México em estúdios parisienses levanta questões sobre representatividade e autenticidade, especialmente em um momento em que essas discussões estão no centro do cinema contemporâneo. Além disso, há quem considere que o uso da violência dos cartéis como pano de fundo para uma fantasia musical trivializa o impacto real desse contexto na vida das pessoas. O roteiro, embora inovador, em alguns momentos flerta com um simbolismo que pode parecer superficial diante da complexidade dos temas abordados (cartel de drogas, corrupção, transexualidade, entre outros). Essa superficialidade em certos aspectos contrasta com a ambição narrativa da obra, criando uma tensão que pode dividir o público.
“Emilia Pérez” não é um filme fácil de categorizar – e essa é, talvez, sua maior virtude. Ele desafia o espectador a sair da zona de conforto, a aceitar suas peculiaridades e a se deixar levar por uma experiência cinematográfica que combina o sublime com o desconcertante. É um filme que, apesar de suas falhas, carrega uma alma vibrante e uma coragem rara no cinema atual. Em última análise, Jacques Audiard nos entrega uma obra que merece ser vista e discutida, não apenas pelo que apresenta na tela, mas pelo que provoca em cada um de nós.