Eu Cinéfilo #76: O Quarto ao Lado - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
Críticas

Eu Cinéfilo #76: O Quarto ao Lado

Pedro Almodóvar mergulha novamente em temas profundos e universais em O Quarto ao Lado, seu primeiro longa-metragem em inglês. Com um elenco de peso liderado por Julianne Moore (Ingrid) e Tilda Swinton (Martha), o filme explora o reencontro de duas amigas separadas pelo tempo e unidas pela tragédia: o câncer terminal de Martha. Essa obra é menos sobre o câncer em si e mais sobre a jornada emocional de duas mulheres que enfrentam a fragilidade do tempo e as memórias que as cercam.

Moore e Swinton oferecem performances de uma delicadeza impressionante, trazendo profundidade às complexas emoções que suas personagens carregam. Julianne Moore, em especial, entrega uma Ingrid marcada por camadas de arrependimento e nostalgia, que aparecem não apenas em suas palavras, mas nos gestos sutis e olhares carregados de saudade. A personagem, uma escritora bem-sucedida, enfrenta o peso da distância emocional que criou entre ela e Martha ao longo dos anos. Esse fardo de culpa é explorado com uma intensidade silenciosa e quase implícita por Moore, que transita entre uma postura rígida e uma fragilidade latente, revelando aos poucos o quão profundamente foi afetada pela ausência da amiga em sua vida.

A frase “Isso não vai acontecer de novo,” que Ingrid escreve de forma quase automática em um livro para uma fã, é um momento aparentemente trivial que ganha força simbólica ao longo da narrativa. É uma promessa que reflete sua culpa, mas também sua vontade de mudança e redenção, como se as palavras carregassem a esperança de que ela possa, de alguma forma, reparar o tempo perdido. Ao longo do filme, essa frase reverbera em pequenas decisões de Ingrid, moldando sua postura diante de Martha e guiando sua tentativa de reaproximação. Moore traz essa vulnerabilidade à tona de forma sutil, sem nunca cair no exagero, criando uma personagem que luta com suas próprias falhas enquanto busca reescrever o que ainda lhe resta da amizade.

Swinton, por sua vez, traz uma Martha que traduz a complexidade da aceitação do próprio fim, carregando uma serenidade perturbadora e uma tristeza que parece se esconder nos detalhes. Sua interpretação é contida e repleta de nuances, revelando uma mulher que enfrenta a proximidade da morte com uma dignidade tocante e uma vulnerabilidade que não tenta disfarçar. Em momentos de silêncio, Swinton diz tanto com um olhar ou um gesto quanto faria com um monólogo inteiro, evidenciando a força e a fragilidade da personagem sem precisar recorrer a excessos. Martha, em sua maneira silenciosa de lidar com a doença, permite que o público se conecte com a dor e a coragem de alguém que está consciente do pouco tempo que resta, mas não quer que esse tempo seja marcado pela pena dos outros.

A química entre Swinton e Moore é o alicerce emocional do filme, dando sustentação a uma narrativa que poderia facilmente se perder em diálogos expositivos. Juntas, elas transmitem o peso de uma amizade que sobreviveu ao tempo e à distância, mesmo com as feridas deixadas pelo afastamento. Nos momentos de maior tensão ou delicadeza, suas interações parecem mais reais do que fictícias, quase como se o espectador estivesse testemunhando uma conversa íntima entre duas pessoas que se entendem em níveis que ultrapassam as palavras. É essa conexão que compensa o uso mais contido de elementos visuais característicos de Almodóvar, permitindo que a relação entre as personagens ocupe o centro da obra e a torne inesquecível em sua simplicidade.

Almodóvar envereda por uma estética minimalista em O Quarto ao Lado, trocando as cores vibrantes e cenários extravagantes, tão característicos de sua obra, por uma paleta contida e um ambiente que remete ao isolamento e à introspecção. O filme se passa, em sua maioria, dentro de uma única casa, refletindo o estado de alma das personagens e a intimidade sufocante de quem encara os últimos momentos da vida. Essa escolha não é acidental; ao despir-se do exuberante, o diretor permite que cada detalhe conte uma história, seja no modo como a luz incide sobre os rostos das protagonistas ou nos silêncios que falam mais que qualquer palavra.

A trilha sonora, composta por notas quase minimalistas, acompanha discretamente o drama e amplifica as nuances emocionais, sem roubar o protagonismo das cenas. A música pontua as interações de Ingrid e Martha como uma testemunha silenciosa de suas memórias e mágoas. Almodóvar, que sempre usou a música para amplificar emoções intensas, aqui opta por um som que parece vir de um lugar profundo, quase espiritual, deixando que as notas conduzam o público por um caminho de aceitação e despedida. É uma abordagem que acrescenta à narrativa uma sensação de quietude e intimidade rara, como se o espectador estivesse adentrando, junto das personagens, um espaço sagrado de reconciliação.

Embora O Quarto ao Lado possa não atingir as alturas melodramáticas de filmes anteriores de Almodóvar, como Dor e Glória ou Tudo Sobre Minha Mãe, ele ainda traz à tona os temas que o diretor sempre explorou tão bem: amor, perda, arrependimento e, acima de tudo, as complexidades das relações humanas. A escolha de um cenário mais intimista e de diálogos densos pode frustrar aqueles que esperavam um filme mais dinâmico, mas os fãs do cineasta espanhol reconhecerão sua assinatura emocional em cada cena.
Almodóvar entrega um estudo de personagem que, mesmo sem os elementos visuais exuberantes que o tornaram famoso, é elevado pela maestria de Moore e Swinton, que habitam suas personagens com uma força emocional contida, mas palpável. Se o roteiro às vezes titubeia, é o talento das atrizes que mantém O Quarto ao Lado em pé, provando que Almodóvar continua sendo um mestre em explorar as profundezas da alma humana.

Ainda que O Quarto ao Lado possa ser um desvio do estilo tradicional de Almodóvar, ele mantém seu olhar afiado para as relações humanas. Ao explorar a complexidade da amizade feminina com sensibilidade, o filme sugere que certos laços são capazes de transcender o tempo, as falhas e até mesmo a morte. A dinâmica entre Ingrid e Martha vai além de uma simples reunião nostálgica; ela é uma reavaliação do amor, das perdas e do que significa estar presente para alguém. Almodóvar parece nos dizer que, mesmo nas relações mais conturbadas, há beleza e redenção. Com isso, ele cria um filme que, embora quieto e contido, ressoa profundamente e pode ate não deixa uma marca duradoura, mas amplia ainda mais a rica e extensão obra humanizada de Almodóvar.

Essa não é uma obra para todos, mas para aqueles dispostos a mergulhar no silêncio e nas reflexões existenciais que a acompanham, O Quarto ao Lado é uma experiência tocante, ainda que não tão arrebatadora quanto alguns dos melhores trabalhos do diretor.

Texto escrito por: Sérgio Zansk

@cine.dende

cinedende.com.br

Deixe seu comentário