A moralização da sexualidade, o conservadorismo e o ódio ao cinema
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A moralização da sexualidade, o conservadorismo e o ódio ao cinema

Os brasileiros estão mais conservadores. É o retrato das pesquisas mais recentes. Parece uma afirmação quase óbvia vindo de um cenário que, no ano passado, uma tentativa de golpe de estado foi armada e que felizmente deu errado, promovido por uma extrema direita ressentida e com um projeto de poder muito claro: a aposta violenta na repressão e censura aos moldes da ditadura militar (1964-1985), e com isso a interrupção a qualquer debate mais aprofundado. Se algo não é debatido, jamais será superado. É esperado que isso se reflita no humor popular e que afete diretamente a percepção da cultura em uma sociedade, visto que histórias orais, visuais ou textuais também fazem parte da manifestação cultural de um povo. Quais histórias estão sendo contadas refletem diretamente no acesso da educação formal e informal de uma sociedade, e demonstram o tom de como essas histórias chegam e são acolhidas, rechaçadas ou censuradas por essa mesma sociedade que as produz. Quanto maior a sensação de insegurança simbólica, mais conservadores tendem a ficar os pensamentos e a recepção de obras que questionam a lógica dominante.

Um panorama incompleto

Falar sobre sexualidade é falar sobre educação, especialmente a informal, passada de geração a geração e produzida pela própria comunidade de que determinado sujeito participa. Sexualidade vai além da orientação sexual e identidade de gênero, e faz parte da formação psíquica, física e social de um sujeito. A sexualidade está presente na forma como nos constituímos enquanto indivíduos e sociedade, ambos ligados umbilicalmente. Embora a ideia de coletivo esteja sofrendo tentativas graves de ser abandonada por um modelo neoliberal em que o indivíduo e consequentemente o individualismo se sobressaiam, se faz necessário retornar à ideia do pacto social coletivo como uma possibilidade de exercer livremente a manifestação da cultura nas suas mais diversas formas e possibilidades, sem cair numa censura moralizante, arcaica e desconectada de um corpo pensante, sexual e crítico.

Por exemplo, Pobres Criaturas, filme dirigido por Yorgos Lanthimos e roteirizado por Tony McNamara, está sendo acusado de algumas coisas completamente improcedentes. 1) De ser um filme pornográfico, o que é uma ironia, já que o filme não tem cenas de sexo explícito: ele tem cenas de “soft sex” e nus frontais. 2) Que normaliza a pedofilia, já que supostamente, na fábula em questão, a personagem da Bella Baxter ter nascido a partir de um cérebro de um recém-nascido é uma ‘normalização’ da pedofilia (como se o filme não demonstrasse claramente o desenvolvimento intelectual dela antes de conhecer o sexo erótico). 3) A ‘normalização’ da prostituição que, supostamente seria por ela conseguir, através do corpo, uma fonte financeira em determinado ponto do filme. A prostituição existe, sempre existiu e vai continuar existindo, o que talvez possa ser debatido é como garantir dignidade e direitos para pessoas que escolhem, por espontânea vontade, exercer essa profissão. Criminalizar não é a saída.

Eu me pergunto se quem diz isso realmente assistiu o filme, pois em nenhum momento há a normalização dessas questões, e o filme sequer passa perto da questão da pedofilia –  que é o tema mais absurdo levantado por várias pessoas nas redes sociais. Isso mais parece um fantasma do discurso moralista do que algo que realmente aconteça. É mais fácil, como as estatísticas mostram, a própria família ser um ambiente incestuoso e as vezes pedófilo do que o ambiente de produção cultural, que supostamente, nas teorias da conspiração, estaria cheio de pessoas produzindo mensagens subliminares de abuso infantil. Essas alegações parecem ser apenas para disfarçar a dinâmica incestuosa que vêm aumentando nas famílias, já que pais estão cada vez mais paranoicos, aumentando o nível de vigilância sobre os filhos – banindo o contato físico com outras crianças – e abandonando essas mesmas crianças à própria sorte com telas ligadas na internet sem muita moderação de conteúdo.

O fato, ao que parece, é que Pobres Criaturas é o novo espantalho da sanha moralizante da sexualidade que vai da extrema direita a pessoas de esquerda que seriam, supostamente, “progressistas”, mas aprenderam a ser progressistas através das redes sociais e não pelo pensamento crítico desenvolvido pela junção da educação informal e formal, ficando à mercê de debates rasos, incompletos e muitas vezes burros. Me parece ser genuíno que o filme seja colocado como um filme incômodo, embora eu não ache isso, mas não pelos motivos debatidos. Sentir-se incomodado é super esperado: pode ser por uma falta de conhecimento sobre outros tipos de fazer cinema, ou por não ter acesso a outras histórias de outros lugares do mundo e estar condicionado a um tipo de filme. Mas sentir incômodo está diametralmente oposto à ideia de afirmar com todas as letras que o filme faz apologia à pedofilia ou a ele ser um pornô. A ficção, a cultura, a arte e a fábula não têm obrigação nenhuma de corresponder à expectativa ou à visão de mundo ideológica ou moral do espectador.

Colocar sobre o cinema ou a arte em geral a função de corresponder às necessidades do mundo é um desperdício de tempo, e esperar que o filme, por exemplo, seja explicativo, didático ou educativo é outro desperdício. É importante que o espectador pense, desenvolva senso crítico e seja capaz, por vontade própria, de produzir uma ideia a partir do que acabou de assistir. E curiosamente, é disso que se trata a trama de Pobres Criaturas. Uma mulher que descobre o mundo por conta própria, que desperta sua sexualidade a partir do conhecimento do mundo (cena do passeio no parque), e que após o entendimento da sexualidade, parte para o mundo e descobre o sexo, os prazeres, o conhecimento, o lugar social dos sujeitos e consequentemente a pobreza e as ironias ambíguas do mundo, rompendo com as barreiras morais que tentam a todo momento podá-la de uma vida autoral, que mata (simbolicamente) o “pai”, o criador e que acolhe, sem censuras, o próprio desejo.

Às vezes, tenho a sensação de estar presenciando um excesso de transferência por parte do espectador, buscando uma correspondência do próprio ideal de mundo no cinema e na arte. São tantas informações desencontradas e superficiais, que estamos perdendo a capacidade crítica de aprofundar em conhecimentos e debates mais engajados, que são impossíveis de serem compreendidos através de uma thread do twitter ou no reels do Instagram. Perdidos frente ao próprio desejo, desencontrados da própria sexualidade e extremamente excitados frente ao nada.

Uma breve (e resumida) história da sexualidade

A sexualidade está presente logo nos primeiros momentos de vida de um recém-nascido. É o que descobriu Sigmund Freud, no célebre texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), que recomendo a leitura, e desde já peço desculpas pelo resumo que farei nos parágrafos a seguir.

O simples fato da alimentação, através do aleitamento, é uma manifestação sexual potente. A boca é uma zona erógena extremamente prazerosa (prazer não-erótico), e que promove sensações de alívio e satisfação que continuam se repetindo na vida adulta – não há nada mais prazeroso do que comer algo quando se está com fome, por exemplo. Freud chamou esse desenvolvimento de fase oral. A significação do toque e o olhar como demonstração de afeto virá um pouco mais tarde no desenvolvimento do bebê.

Dando um (grande) passo adiante, temos outro tipo de prazer como demonstração da sexualidade humana que se manifesta: o controle dos esfíncteres. Há, em algum momento, que sair das fraldas e aprender a urinar e a defecar nos lugares corretos – geralmente em um vaso sanitário. A atividade de segurar e evacuar os excrementos é extremamente prazerosa e cheia de significado psíquico, pois como sabemos, é de grande alívio, quando se está apertado (ou não), urinar e defecar. Freud chamou esse desenvolvimento de fase anal.

Entrando em polêmica (por motivos que não compreendo), temos a etapa do descobrimento dos órgãos genitais. Toda criança, inclusive você que está lendo, seja menino ou menina, já se tocou e descobriu que se tocar é prazeroso, mesmo que isso não venha com o significado erótico que se adquire na adolescência. Só sabemos que o estímulo dos órgãos genitais é simplesmente bom, e que apesar de ser bom, não podemos ficar mexendo neles a toda hora. Possivelmente seus (meus) pais ou cuidadores, falaram para parar de mexer, para tirar a mão, e que bom que isso aconteceu. Freud chamou esse desenvolvimento de fase fálica junto com outros acontecimentos mais complexos de resumir nesse texto.

Vagina e pênis não são as coisas mais importantes na vida, há de se descobrir outros prazeres, como brincar, ler, assistir desenho e ir para a escola, atividades tão importantes quanto. Passado esse período até a adolescência, esses estímulos sexuais não-eróticos ficam em estado de suspensão ou período de latência, e só vão reaparecer com mais intensidade com a chegada da adolescência. É logo a partir da adolescência que vamos também sublimando essa sexualidade, ou pulsão, e transformando-a em outras coisas: descobrindo uma profissão, fazendo arte, produzindo ciência, escrevendo, fazendo filmes, construindo coisas etc. Mas isso é assunto para outro momento.

Na adolescência esses estímulos retornam com outros significados e se descobre a idealização, a condensação do prazer, as fantasias simbolizadas, em que o pensamento concreto deu um pulo para o pensamento abstrato, que se juntou com a corporeidade e os hormônios a flor da pele. Na adolescência, o corpo volta a ser um agente extremamente importante para o sujeito, que agora simboliza a fantasia erótica dele com um outro, passando do significado para o significante. Disso surgem os primeiros namorados(as), os crushs famosos, a masturbação, o beijo e, um pouco mais tarde, o sexo. Destaque importante para as mudanças hormonais que atravessam a adolescência com a força de um ônibus desgovernado tal qual em Velocidade Máxima (1994) – Keanu Reeves e Sandra Bullock, o casal mais tesudo dos anos 1990.

E é justamente nesse momento que se faz necessário a disciplina de educação sexual nas escolas, lugar em que educação formal e informal se unem na produção de um senso crítico, sobre si mesmo, o outro, a sociedade e os cuidados importantes para esse período da vida. Esse é o percurso do desenvolvimento da sexualidade humana, algo que passa diretamente pela constituição e descobrimento do corpo como uma entidade unitária com o psiquismo, que influencia e sofre influência. Mente e corpo são uma coisa só, não há divisão, e a sexualidade se impõe, quer gostemos ou não. Parece que Tony McNamara e o autor do livro base, Alasdair Gray, leram Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.

O sexo ainda é tabu (infelizmente)

O sexo é uma das manifestações da sexualidade e chega um pouco mais tarde na adolescência. Ultimamente, a palavra e a ação é temida pela geração Z, por pais e cuidadores desesperados com seus filhos aprendendo “coisas que não deveriam”. A questão que aparece nessa hiper proteção dos pais e cuidadores é a ausência de observação e o diálogo dos responsáveis legais ao educar os filhos sobre o uso de internet e sobre outros assuntos da vida em sociedade. É importante debater sobre o acesso à pornografia na vida de um adolescente, mas não é proibindo que vamos chegar num denominador comum sobre essa questão.

Como a breve história da sexualidade apresentada por Freud demonstra, existe um corpo que exige e demanda, de forma espontânea, necessidades básicas de prazer e satisfação, e o sexo é um desses caminhos. É importante para o desenvolvimento de qualquer animal humano, independente da orientação sexual ou identidade de gênero. Castrar esse debate ou censurá-lo e colocar tudo no balaio da pornografia – a grande vilã do momento – é uma das decisões mais estúpidas e imaturas que a humanidade pode ter. É importante situar que o sexo é algo comum, cotidiano, e que com responsabilidade e consentimento das partes envolvidas, faz parte da vida humana, e se faz parte da vida humana ele estará presente na arte, no cinema, no rádio e na TV com as devidas regulamentações de classificação indicativa. É mais comum gostar e vangloriar a cena de um tiroteio e chacina em um filme do que uma cena de sexo – mais uma das enormes contradições desse debate.

A partir desse cenário, parece coerente substituir o prazer e satisfação corporal por likes e vídeos curtos, por exemplo, e recalcar – também através da religião, em especial as neopentecostais – as necessidades de um corpo em plena atividade. Talvez isso nos ajude a compreender o asco e o pânico moral em torno da sexualidade humana e de obras artísticas que discutem o desenvolvimento do corpo e liberdade feminina, como em Pobres Criaturas. O que parece pior é que essa e outras obras, de maneiras diferentes, estão sendo atacadas em sua maioria pela extrema direita, algo ecoado por pessoas supostamente inclusivas no combate à censura e à moralização da arte. Isso coincide com a resistência da extrema direita e a continuidade e ascensão de figuras fundamentalistas na vida política do Brasil, influenciando na propagação de teorias fundamentalistas sobre o desejo e o corpo feminino, a moralização da sexualidade humana, e o esvaziamento de pautas verdadeiramente relevantes como o combate ao racismo, a LGBTfobia, e a misoginia.

Criaturas muito pobres e sem rumo

A cinefilia, a crítica de cinema, a arte e o jornalismo cultural parecem desnorteados quando o assunto é promover debates mais sérios frente a esse avanço do fundamentalismo e moralidade castradora nas artes, e muitas vezes acabam caindo em iscas e teorias descabidas jogadas pela extrema direita. Incels, redpills, nerdolas e neonazistas, embora sejam grupos bem diferentes, se unem numa luta uníssona: radicalizar o debate, espalhar pânico moral e promover fortemente suas mensagens misóginas e racistas, especialmente através de provocações explícitas ou, no pior dos casos, memes irônicos. E digo que a cinefilia e a crítica de cinema em específico caem nessas provocações pois a necessidade de responder ou tirar sarro dessas ideias absurdas fala mais alto, visto que gera like e visibilidade. Eu desconfio que esse seja o melhor caminho para debater essas questões.

Me parece cada vez mais urgente tratar o sexo nas artes com a maior naturalidade possível. O jornalismo cultural precisa aprender outras maneiras de noticiar, sem fazer alarde, em especial sobre cenas de sexo nos filmes. Pablo Villaça, crítico de cinema, num vídeo lançado recentemente em que discute polêmicas sobre a cinefilia e moralidade, aponta a inclusão de coordenadores de intimidade nos sets de filmagem, o que garante mais segurança para os atores envolvidos e a equipe técnica, e isso parece ser um avanço fundamental para acabar com a objetificação do corpo feminino por parte de diretores e produtores. Isso é uma medida fundamental, diferente da ideia muito recorrente nas redes sociais – que parece abarcar todos os espectros políticos, especialmente entre os mais jovens – de acabar com as cenas de sexo nos filmes, ou a ideia mais absurda ainda, um botão para pular as cenas de sexo.

Isso parece mais uma resposta a esse descompasso frequente de um não reconhecimento da corporeidade como aspecto fundamental da vida humana, e uma hipervalorização fracassada de aspectos puramente mentais, promovendo uma castração do prazer corporal, que, como vimos, existe e é pulsante. Essa mesma ideia parece se refletir também numa hipersensibilidade por parte de alguns públicos de sempre pedirem para serem sinalizados sobre aspectos que podem gerar incômodo, os chamados gatilhos – palavra que me gera profundo ódio ao seu significado nesse contexto. Esse fenômeno parece ser crescente mais entre leitores e menos na cinefilia, mas parece partir do mesmo princípio: evitar ser afetado fisicamente e psiquicamente por algum conteúdo que esteja na obra (abuso, sexo, uso de drogas etc.) e evitar o contato com sensações corporais (ansiedade, angústia, tesão, excitação, raiva etc.). Parece haver uma tentativa constante de buscar um anestésico frente à arte e de estar o mais preparado possível frente às possíveis surpresas que podem aparecer.

Por isso que, talvez, as cenas de sexo sejam tão ameaçadoras para alguns públicos. Elas não garantem absolutamente nada, a não ser aquilo que se propõem a ser. Pode vir como algo do cotidiano que demonstra amor, paixão ou simplesmente tesão, ou de forma violenta para representar um abuso. Mas há uma diferença considerável nessas representações: a forma como a cena é concebida e filmada e o contexto narrativo em que elas acontecem. Representar não é endossar, como disse Pablo Villaça em um vídeo sobre o filme A Caça (2012). O cinema é uma linguagem que demanda compreensão, contexto, e que vai além do roteiro ou fotografia. Se haverá verossimilhança na narrativa é outra coisa, pois há vários gêneros que não necessariamente apresentam verossimilhança em seu sentido stricto sensu, elas simplesmente precisam operar dentro de uma lógica naquele universo diegético, e ao observar isso, por exemplo, o filme Pobres Criaturas e outros semelhantes são completamente coerentes dentro do universo em que se passam.

É possível discutir sobre como essas cenas são feitas, como a sexualização das atrizes é sintomática, o olhar de quem projeta, a pouca quantidade de nus frontais masculinos no cinema e tantas outros debates interessantíssimos. A questão que tem aparecido, e ela é um pouco preocupante, é sobre a legitimidade de diretores homens em filmar cenas de sexo ou nudez, especialmente quando envolvem mulheres. Essa me parece ser uma questão incompleta que não responde ao real problema que é a objetificação de corpos femininos. Não me parece ser possível garantir que por ser um homem filmando uma cena de sexo ou a história de uma mulher, imediatamente teremos uma visão objetificada ou estereotipada. Ao partir dessa afirmação estamos desconsiderando a agência da mulher em cena, como se ela, enquanto sujeito, não pudesse decidir, discutir e querer ou não fazer a cena. A atriz Emma Stone, protagonista de Pobres Criaturas, discutiu esse tema quando questionada sobre as cenas de sexo. Ela foi produtora do filme.

E mesmo que haja casos notórios de abusos no set, não me parece ser um caminho razoável banir a direção de homens quando estamos falando de cenas intimas em um set de filmagem. Apostar nessa solução é um tiro no pé, que pode até eliminar um sintoma, mas não elimina a causa, que me parece ser como homens se sentem autorizados a tratar de maneira objetificada o corpo feminino. E acrescento que esse mesmo debate vale para a indústria pornográfica. Não será acabando ou demonizando a pornografia que teremos o fim da objetificação da mulher: isso é um sintoma, e a causa é mais complexa que isso. Apostar nisso é usar a mesma estratégia que a extrema direita usa em qualquer debate: soluções simples para problemas complexos, o que vai além da discussão sobre a indústria cinematográfica e esbarra em questões sociológicas, antropológicas, psicológicas e históricas, no mínimo.

Moralizar esse debate e a sexualidade, e tratar o sexo com o olhar higienista, como se o bom sexo é aquele que é limpo, puro e sagrado, é só mais uma das centenas possibilidades de jogar para organizações fundamentalistas um tema que é completamente público, aberto e deve ser olhado com transparência e enfrentamento dos abusos. Em um post em seu Instagram, o cineasta Kleber Mendonça Filho fez um apontamento interessante sobre a classificação indicativa dos filmes a partir de uma importação de termos como “sexo explícito” para cenas que não tem sexo explícito (o caso de Pobres Criaturas) e para uma “puritanização” de um termo que sempre foi muito claro no Brasil, o sexo explícito.

Sexo explícito, no Brasil, é um termo usado para filmes que tem hard sex, com penetração, e close nas genitálias, por exemplo. Filmes não pornográficos que me veem a mente com sexo explícito: O Império dos Sentidos (1976) e Ninfomaníaca (2013), que inclusive são bons filmes, sendo o primeiro muito melhor que o segundo. Lendo o post do Kleber em que ele também cita O Império dos Sentidos, me lembrei de um podcast do UOL Tab chamado Brasil para Maiores, apresentado pelos jornalistas Marie Declercq e Tiago Dias, que resgatam a era polêmica do pornô brasileiro nos anos 2000. Num dos episódios que investigam o passado da indústria pornô e o erotismo na sociedade brasileira, há uma passagem muito icônica que envolve o filme O Império dos Sentidos, e cineastas como o famoso José Mojica Marins, nosso eterno Zé do Caixão.

Ou seja, esse país sempre foi muito moralista e violento (duas coisas que andam de mãos dadas), mas esse mesmo país produziu filmes eróticos excelentes, especialmente na época da pornochanchada, e promoveu cenas fantásticas na TV, como a banheira do Gugu e o sushi erótico do Faustão nas tardes de domingo. Do “é proibido proibir” da década de 90 saindo da ditadura militar, paramos em um fundamentalismo neopentecostal pop que engana até os mais atentos. Esse movimento parece se transportar para uma crítica de cinema cada vez mais conservadora e ranzinza, em que parece ser bonito odiar ou endeusar determinadas pessoas, como se estivessem descobrindo a roda novamente. Acho que a crítica e a cinefilia precisam ser mais críticas, mas isso não significa serem conservadoras e reacionárias como tem acontecido com frequência.

Das estrelinhas do Letterboxd às críticas e reviews dos críticos preferidos, ou as famosas threads infinitas no twitter, parece que estamos apenas defendendo o nosso lado sem provocar nenhum debate. Num texto publicado neste site, a colunista e crítica Fabiana Lima discute a partir de um texto do crítico Luiz Carlos Merten sobre a generosidade da crítica e como a crítica de cinema tem se “perdido” no ódio dos algoritmos, e esquecendo talvez seu papel frente ao próprio cinema. É muito fácil cair na sedução do “ame ou odeie” das redes sociais e deixar escapar a autoralidade e autenticidade por parte de quem escreve, e me parece que o próprio Merten, a Fabiana e eu incluso, ao escrever este texto, temos tentado promover esse debate mais aberto e transparente. As redes sociais podem servir, com muitas ressalvas, para continuar um debate. Para começá-lo, elas não têm funcionado, e estamos rodando em círculos, totalmente perdidos.

Engajar para fora das redes sociais, como este site ou tantos outros, com debates e assuntos mais relevantes, educativos e complexos, como é o caso do sexo nos filmes, o ódio da crítica, a proteção do cinema nacional – um beijo para a Marina Rodrigues do Simplificando Cinema – parece ser um caminho menos beligerante ao invés de simplesmente criar assuntos inúteis porque dão audiência. As redes sociais não servem para debates, infelizmente. Elas servem para monólogos, e não será com isso que vamos avançar numa educação audiovisual ou conhecimento da história do cinema, apenas continuaremos reclamando de como chegamos até aqui, nesse lamaçal de estupidez, burrice e conservadorismo rasteiro. Enquanto os conservadores, incels, nerdolas e fundamentalistas religiosos, que odeiam o cinema, têm um plano bem claro de “educação” e conseguem arrastar com eles centenas de jovens, nós estamos discutindo se Barbie (2023) é “feminista de verdade” ou se Pantera Negra (2018) é ou não revolucionário. Eu de verdade acredito que esses debates inúteis da cinefilia e da crítica só demonstram nosso amor pelo cinema, e talvez amemos tanto essa arte a ponto de nos alienarmos e não querermos dar notícias de outros assuntos que atravessam esse nosso amor.

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