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Carvão é a destruição construída de um futuro sem esperança

Assistir a Carvão é um misto de sensações e surpresas, em especial a comédia quase involuntária que contrasta com um drama agressivo e os limites da moralidade frente a necessidade. De início somos apresentados a uma família do interior que tira seu sustento da carvoaria e há sérias dificuldades financeiras. O pai da protagonista está acamado e é tratado da forma que é possível. A casa extremamente simples e apertada rima com a situação financeira e emocional dos moradores. Tudo muda quando aceitam uma proposta pouco convencional e a partir disso a construção de algo já destruído se consolida.

A grande protagonista é Irene, interpretada pela magnífica Maeve Jinkings, que por sinal, sempre está ótima. Irene é casada com o pateta Jairo, numa excelente atuação de Rômulo Braga. Jairo nada opina, não gosta de trabalhar e mantêm um romance escondido com seu vizinho, Sérgio, papel de Pedro Wagner. Porém, o grande destaque é o filho Jean, interpretado pela revelação de mesmo nome Jean Almeida. O garoto tem um carisma estupendo. Suas falas são ditas com tanta naturalidade que mesmo em situações estressantes consegue transmitir um humor irônico e não intencional. Jean fala pouco, e quando fala é magnífico, mas suas observações, sempre à espreita, comunicam sua mudança.

Irene é a mais corajosa e topa receber o traficante fugido, o argentino Miguel, papel de César Bordón. Contudo, ela terá que desocupar espaço na casa. A proposta chega através de Juracy, enfermeira da UBS, papel de Aline Marta Maia. Juracy é impiedosa, fria, mas com senso de humor muito curioso, além de comandar todo o esconderijo do gringo. Irene e Juracy, numa noite juntas, pegam o pai acamado e o jogam num forno de queima de lenha. O espaço agora está livre.

Carolina Markowicz que dirige e escreve, produz uma história bem brasileira. Uma mãe que comanda a casa, cuida da educação do filho e do pai acamado. Um marido bananão que não consegue, por inúmeras razões, bancar seus desejos e todos sobrevivem de um trabalho adverso.  O uso da suspensão moral faz toda a diferença, visto que vamos acompanhar com alguma tensão, o assassinato do pai já nos primeiros minutos, a introdução de um sujeito estranhamente hostil, mas que alavancará financeiramente essa família, e um novo jogo de poder que mudará a convivência numa vida pacata, mas com um fim previsto.

Um ponto que fará diferença no desenvolvimento, é a dificuldade em estabelecer uma marcação temporal, já que elementos tecnológicos recentes não estão presentes no início. É basicamente uma vida analógica que parece ser início dos anos 2000. Com a ascensão financeira, uma TV LED surge na sala, celulares novos e presentes para o vizinho, que num outro plano levantam suspeitas dos mais próximos. Dos anos 2000 somos transportados para o que pode ser 2019, uma vez que o acesso financeiro chega até essa família.

À medida que esses elementos entram em cena, a família que vivia apertada, inicialmente financeiramente e por ter um novo integrante que chega e exibe seu poder mesquinho, em seguida se reestabelece, e o traficante, que talvez seja mais usuário e apenas performe um poder que não tem, vai se apequenando. Sobreviver e sustentar essa contradição deixa tudo a flor da pele. Problemas com o filho na escola, dificuldade em esconder o segredo, os surtos de Miguel pela falta de droga, elevam a temperatura num caldeirão fervente de necessidade, agressividade e violência.

A casa é uma personagem que se movimenta a partir dos crescentes estranhamentos, uma vez que os moradores vão se adequando ao espaço, alternando entre a inclusão e a exclusão. O design de produção faz um registro belíssimo de constituição de cenário que, com o passar do filme fica mais limpo e espaçoso, mesmo que simbolicamente venha pela frente sujeira e destruição. A fotografia compõe um jogo de luzes e lentes que caminham entre a penumbra e a claridade natural, para algo mais compreensível e aberto, ainda que o ambiente seja completamente opaco. A câmera na mão registra a instabilidade óbvia do contexto, e faz pausas estáveis apenas a distância, mas nunca sem abandonar a claustrofobia do momento.

Além da qualidade técnica, o que engrandece Carvão é a ausência de julgamento moral sobre suas personagens. Somos convidados a ser espectadores da destruição anunciada dessa família, que pelas razões apresentadas, aceitam uma proposta intrigante para conseguir sobreviver. O roteiro é sagaz ao encontrar tempo para levantar uma discussão interessante sobre a performance de gênero e a sexualidade que atravessa seus personagens. Ao tratar isso como parte da personalidade e não algo alheio, o carisma de uma história cortante, aumenta. Somados, esses fatores contribuem para a crescente importância que eles têm na dinâmica de poder que estão disputando.

O poder, talvez, nunca tenha saído da mão de Irene, e ela sempre soube que não poderia contar com o marido. A chegada do novo integrante que pode mudar o destino da família e a desconfiança dos vizinhos, obriga Irene a segurar as rédeas e não desistir, já que a única opção viável seria continuar. Aquilo que seria uma saída da posição de quase miséria e sem direitos, se transformou na disputa do futuro menos trágico, e todo o poder, afeto e violência distribuídos, encontram um receptor que personifica a aniquilação de qualquer esperança.

Carolina Markowicz não alivia e faz questão de levar as últimas consequências a ausência de futuro, o pior pesadelo de um ser humano. Perspectiva parecida só que em menor escala, está presente em ‘O Órfão’, seu curta-metragem belíssimo e premiadíssimo de 2018. Carvão reforça o jeito impetuoso, estilizado e tragicômico de Markowicz contar histórias, rendendo o prêmio de ‘Melhor Primeira Direção de Longa Metragem’ no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2023. No páreo da pré-lista de selecionados para disputar uma vaga no Oscar, está seu novo filme, ‘Pedágio’, que estreou no Festival de Toronto essa semana.

Carvão revela para um público maior uma diretora e roteirista habilidosa e perspicaz, e se transforma num clássico do cinema nacional ao apostar numa crescente destruição moral de personagens à margem. Quando se fala de sobrevivência, as possibilidades são escassas, e a aposta no ‘perverso nosso de cada dia’ se torna a opção. Não há grandes futuros para a história, e qualquer tentativa de fazer algo com o que sobrou, é como querer construir uma casa com os escombros que acabaram de desabar, dificilmente vai parar de pé.

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