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Retratos Fantasmas: as cidades, a arte e a memória

Eu estava me lembrando do livro A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. O romance é lindo, potente, e traz uma história que não apenas envolve, mas tem como protagonista um Daniel – algo que me atingiu pessoalmente. Não me lembro de ter lido outro livro em que o personagem principal tinha o mesmo nome que eu.

Neste livro – e nos outros dois dele que já li – Zafón mostra uma Barcelona opressiva e misteriosa. O autor catalão situa seus romances na cidade em que nasceu e viveu, e o faz com atenção aos detalhes: comenta as avenidas, os casarões, e até mesmo as ruas mais obscuras.

Em maio deste ano, tive a oportunidade de visitar a capital da Catalunha. Por seis dias, caminhei pela cidade e visitei seus principais pontos turísticos. Fiz tour de bicicleta, tirei muitas fotos dos prédios construídos por Antoni Gaudí, comi em restaurantes variados, incluindo o famoso Els Quatre Gats, citado na obra de Zafón, entre outras coisas.

Demorei um pouco a concluir algo importante: a Barcelona que conheci era muito diferente da Barcelona de Zafón.

É claro que eu não esperava encontrar uma cidade obscura e repleta de becos sinistros. Mesmo assim, pouco senti da cidade que o escritor descrevia nas páginas. Eram cidades diferentes. A Barcelona de Zafón é um espectro da Barcelona verdadeira – ou pelo menos de seu eixo turístico.

Espectro… fantasma.

E no último fim de semana fui ver “Retratos Fantasmas”, de Kléber Mendonça Filho. O documentário fala de muita coisa, mas detenho-me à homenagem que o filme faz à cidade do Recife. Assim como Zafón amava Barcelona, Kléber ama o Recife. No caso do novo filme do cineasta, vemos seu amor transbordar não apenas no texto que ele mesmo narra, mas em cada cena, cada momento de respeito pelos prédios e pelas pessoas que viveram no centro da capital pernambucana.

E eu me apaixonei pela cidade. Nunca estive no Recife, mas fiquei encantado e já coloquei a cidade no topo da lista dos meus próximos destinos turísticos. Se eu já tinha curiosidade de conhecer o “prédio da Sônia Braga” de Aquarius e a vizinhança de O Som ao Redor, agora tenho mais interesse em visitar a região central e as margens do Capiberibe.

No entanto, após a experiência na Espanha, sei que não vou encontrar o Recife de Kléber. No documentário, ele fala exatamente sobre isso: as mudanças que a cidade sofre ao longo do tempo, e como a memória vai se tornando apenas um espectro nas fotos, nos vídeos e nos registros borrados. Até o latido do cachorro do vizinho, se for gravado, permite que o fantasma do cão reapareça de vez em quando – como vemos em Retratos Fantasmas.

No documentário, os fantasmas de Recife são baseados no passado e na memória do diretor. Memória que sempre tem um pouco de ficção, de interpretação. Enquanto isso, a Barcelona de Zafón talvez seja só ficção, mas certamente tem algo de memória, já que toda ficção é um pouco biográfica. A capital catalã, vale lembrar, só foi se tornar um destino europeu renomado e badalado após as Olimpíadas de 1992, e Zafón viveu a infância em uma cidade sob o governo do ditador Franco, um desses fantasmas que torcemos para que nunca volte à vida.

Foto que tirei no Bairro Gótico, em Barcelona

Retratos Fantasmas traz à tona uma memória que pode ser revivida. Com investimento e valorização da cultura, é possível que o centro do Recife volte com seus cinemas de rua, a despeito das mudanças inevitáveis que o tempo nos traz – porque sempre haverá uma nova farmácia sendo inaugurada por aí.

Há aqueles fantasmas dos quais não podemos esquecer, para que não retornem nunca. Fantasmas de ditadores, de torturadores e de períodos violentos. Estes devem permanecer apenas como espectros na memória, porque esquecê-los seria abrir caminho para repeti-los. A realidade, no entanto, é que muito do que amamos e gostaríamos de reviver permanecerá sempre como fantasma – nas nossas fotos antigas, nos documentários e nas páginas dos livros. Com a arte, aprendemos a conviver com esses fantasmas das cidades, dos tempos passados, dos prédios que contam histórias. E conviver com tantos espectros é a melhor maneira de valorizar o momento presente e agir no hoje para deixar um legado de futuros fantasmas para os que virão, nesse ciclo inevitável que é a vida e a construção da memória.

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